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segunda-feira, 17 de julho de 2017

Zanga de namorados1

No café da manhã uma discreta zanga de namorados. Na mútua troca de palavras, de repente, ela disse:
- Tens que comparar como hoje vês isso e como viste na altura… Adeus!!!, e saiu.

Ele ficou quieto e com "ar amarrotado":


Fiquei a pensar pois a frase era interessante. 

Na verdade, as memórias não são "fotografias mentais" do que acontece mas sim "fotografias mentais retocadas pelos significados que lhes damos". 
Estes significados dependem do ponto de vista interpretativo utilizado quando foram registadas e esse ponto de vista vai variar, muito ou pouco, com as vivências que vamos tendo.

Dizer "Eu dantes era muito parvo" significa apenas que a perspectiva pessoal sobre o registado, as "recordações", se alterou.  
O mais interessante é que o conteúdo desse "recuerdo" pode ser reformulado por uma espécie de retoque positivo ou negativo sobre o acontecido, do tipo [… não, não, …a bofetada foi apenas uma carícia mais intensa…] ou...

No julgamento, dizia o marido:
- …mas eu, ao chegar a casa, atiro-lhe sempre uma flor…
Dizia a mulher:
-…pois, mas é um cacto com vaso...

In brevis, as recordações são apenas o resultado de perspectivas de vida incidentes sobre registos arquivados, parcializando, embelezando, acrescentando, etc.

Ao contrário do computador em que os documentos não se transformam ao mudar a estrutura WinXP para Win7, Win10, etc, no cérebro humano as memórias arquivadas alteram-se com a estrutura ateia, cristã ou budista posterior ou até, simplesmente, com a mudança de apaixonado para indiferente em que, por ex., carícias desejadas passam a carícias indesejadas. 

Como exemplo frequente são os mesmos acontecimentos serem recordados diferentemente consoante se está em pré-casamento (só detalhes positivos) ou pré-divórcio (só detalhes negativos) apesar de ambos terem sido reais.

No ser humano os processos cognitivos são sempre "entrançados" com processos afectivos e estes nas conversas amorosas são os dominantes.

No pensar humano o constante entrançar de cognitivo-afectivo origina uma meditação budista bastante interessante. Ela intensifica a comparação de mudanças de perspectivas e de conteúdos ao longo do tempo de vida. A sugestão citada no início deste post [...comparar como se vê hoje e como se viu na altura] expressa bem a sua essência base. 

Quando há muitos anos tive conhecimento desta técnica e não tendo paciência para uma rotina de "diários" resolvi que, em períodos "mutantes" da minha vida, escreveria cartas aos meus filhos que na época eram ainda crianças e/ou adolescentes. 
A ideia era fechá-las em envelopes, não as tornar a ler, deixar passar muitos anos e entregá-las quando já fossem homens "vincados" pelos detalhes da vida.  

Todavia as perspectivas evoluem e, mais tarde, resolvi abrir uma das 14 cartas existentes, tornei a ler o que tinha escrito e depois de muito "conversar com os meus botões" resolvi, sem as abrir, destruir todas. 

Foi uma conclusão simples, decidi "não quero saber", o passado fica no passado. 
Os meus filhos construirão o seu passado com seus acontecimentos e suas perspectivas, não lhes deixarei mais marcas do que aquelas que já deixei numa época em que era diferente do que sou hoje. 

Gosto de conversar com eles sobre esse passado mas isso é diferente, sou EU a falar hoje dos "ontens" quando EU era diferente. Às vezes sei a diferença, outras vezes não. Portanto, essas conversas não são sobre o passado são sobre o presente a olhar para o passado. 

Paradoxalmente, só guardei a única carta que abri, ainda não descobri porquê, mas o seu destino está decidido é para rasgar, ninguém a vai ler. Até lá, está guardada em sítio que só eu encontro, um doc. com password de código dentro de código.

Para terminar, uma conclusão sobre a zanga de namorados do início deste post. A sua conversa estava cheia de diálogo mas tinha uma comunicação nula. 

Comunicação é troca de significados não é troca de palavras, as palavras só servem para inserir significados. A inserção obriga a possuir um dicionário tradutor de significados, se não existe a comunicação é nula, se é mal traduzido é des-comunicação:


Uma conversa exige um dialecto cognitivo e um dialecto afectivo. Pode-se conversar no mesmo idioma cognitivo mas com dialectos afectivos diferentes. Numa conversa comercial o dialecto cognitivo tem preponderância (ambos falam chinês), mas numa conversa amorosa a preponderância está no dialecto afectivo pois se, para um significa respeito e para outro é desprezo, o conflito e a zanga aparecem.

Aquele par de namorados tinha dialectos afectivos diferentes, entendiam-se nas palavras mas diferiam nos significados afectivos. Ele transmitia sinais de grande emotividade positiva que não era recebida e ela mostrava a sua frustação em emotividade negativa que não era percebida. Era como se, afectivamente, um conversasse em chinês e o outro em esquimó.

Os padrões de dialecto afectivo aprendido na infância não tinham inserido os seus dicionários. Possivelmente no início do namoro o tradutor universal das hormonas sexuais tinham tornado desnecessário essa necessidade, tudo significava o mesmo,… mas então a conversa era outra, agora o divórcio aproximava-se e era preciso instalar os dicionários afectivos.

domingo, 16 de julho de 2017

Tatuagens e vida



As tatuagens não me incomodam, o meu problema é outro, até porque fica bonito, agradável e inesperado a tatuagem espreitando pelo decote nas costas.

A minha questão já vem de tempos antigos. 
Nos meus 19 anos visitei o Oriente e fiquei encantado com a China e o seu mundo tão diferente do Ocidente. Conversando com amigos, apareceu a ideia de todos guardarmos a lembrança dessa visita fazendo uma tatuagem de um dragão chinês. Depois de muitas ideias e contra-ideias sobre o local, tamanho , estilo, etc, acabou por se concordar por um pequenino dragão no pulso para ficar tapado pelo relógio.

Nos dias seguintes fiquei a pensar [... e se começasse a usar relógio de bolso?] e decidi não o fazer. Desde essa altura até hoje fiquei com o trauma do "relógio de bolso" até porque há muitos anos que deixei de usar relógio, mesmo muito antes dos telemóveis porque havia relógios por todo o lado, no carro, nas empresas, na casa e, claro, no pulso de toda a gente.

Desde essa altura  que o meu problema com as tatuagens é ficar  "preso" a ela para toda a vida. A pele pintada não me incomoda, o que me incomoda é não poder despintar.

A vida é demasiado rica e complexa para se ficar "parado" no seu fluir. Parafraseando o poeta, "cada momento que vivo é sempre um início do fim da minha vida". Ficar limitado nas possibilidades desse momento por uma decisão então considerada boa mas que se pode tornar má… irrita-me se lucidamente já a considero não imprescindível.  

Hoje penso que esta posição partiu de um filósofo que li na minha adolescência que dizia que as decisões boas são aquelas que sentimos que "noutras circunstâncias decidiremos o mesmo". Olhando para trás, para aquelas decisões que provocaram uma "cambalhota no caminho da vida" se, por muitos problemas que tenham causado, ainda hoje ainda as decidíssemos do mesmo modo é porque mereceram a pena. E uma tatuagem para a vida inteira não sinto que pertença a este tipo.

Viver é... em cada segundo decidir o futuro, do mesmo modo que escrever é em cada segundo decidir a palavra seguinte e se continua ou não a escrever. 

Deste modo, decido acabar e despeço-me com uma síntese:

Concordo com tatuagens quando facilmente as puder tirar e depois puder torná-las a pôr, pois a razão é  simples: o corpo é meu e, voluntariamente, não lhe tiro possibilidades. 

PS- Acabo de re-decidir continuar. 
Estou a chegar à conclusão que estar no café e assistir à vida que me rodeia é mais interessante e estimulante do que ver os canais e programas da TV cuja rotina é mesmo rotineira.
Inté


sexta-feira, 16 de junho de 2017

A guerra das torradas

ou a "Lógica no quotidiano" !!!

Hoje, houve um conflito no pequeno-almoço: uma torrada ou duas meias-torradas ?

A diferença é que a torrada são duas fatias de pão saloio e custa 2,7 euros e a meia-torrada é uma fatia e custa 2,4 euros.

O conflito era simples, o dono do café queria receber 4,8 euros por 2 meias-torradas e as duas clientes queriam pagar 2,7 euros por 1 torrada.

O interessante é que a discussáo sobre o preço desapareceu e transferiu-se para a análise de frases e a lógica de pratos.

A cliente:

- Eu pedi uma torrada para as duas !!!

O dono do café:

- E nós colocámos uma fatia em cada prato e levámos para a mesa, portanto, foram 2 meias-torradas. !!!

A cliente:

- Não foi ... foi uma torrada em dois pratos ... e o que pedimos foi uma torrada num prato… e se depois ambas comemos do mesmo prato, ou não, o problema é nosso.

O dono:

- Mas foi entregue o que pediram ... meia torrada para cada uma.

A cliente :

- Não sabe se eu só dava uma dentada,... nós queremos uma torrada para as duas e dividimos como queremos.

O dono: 

- Sim, mas uma torrada para duas é metade em cada prato, portanto, meia-torrada para cada.

A cliente:

- Portanto, não nos deram o que pedimos que foi uma torrada e não duas meias torradas... não temos que pagar, foi oferta... e agora queremos a torrada que pedimos. 

Os clientes interessados acompanhavam o debate e o resultado que iria ter. Talvez por isso a conversa continuou em surdina e não se percebeu a solução. Tudo terminou e as clientes sairam. Acabou assim a "guerra das torradas" com um acordo em privado. 

Porém, é possível tirar algumas conclusões acerca de "lógicas no quotidiano"e já há experiências a partilhar neste campo.

Para os clientes, cuidado com partilhas e ... pelo sim, pelo não, metam sempre a mão no prato do parceiro, nada de divisões, como nesta partilha de batatas fritas...


Neste caso o risco seria grande pois pagar-se-ia 5 pratos mal cheios de batatas ou discutir-se-ia "quantas batatas deve ter um prato".

Para os donos dos cafés a conclusão é que devem clarificar o regulamento com letreiros evidentes da burocracia em vigor:


Três Observações técnicas sobre o letreiro:

1ª - Não é uma "tasca" pois tem uma direcção e não um gerente;
2ª - São evoluídos pois escrevem segundo o "Novo Acordo Ortográfico", vide DIREÇÃO só com um "c";
3ª - Não se percebe se querem dizer " Não é permitido duas pessoas comerem no mesmo prato" ou se é um restaurante de antropofagia e avisam que para comer duas pessoas elas têm que vir cada uma dentro de um prato.



terça-feira, 13 de junho de 2017

O diferente, a vida e a sociedade

"Boat bird"- 190 Azulejos de feltro (felt tiles)
Preâmbulo
Apesar deste post ter sido detonado por uma pintura, ele não é sobre arte, seus aspectos artísticos, estéticos, comunicativos, etc, pois não me atrevo a tal, sou um simples "gourmet" do tipo "gosto… não gosto" e não um "chef", um artista ou comentador especializado.

O interessante é que o quadro, quando eu percebi a técnica utilizada, provocou em mim uma espécie de epifania centrada sobre o conceito "diferente", pelo que andei vários dias "embrulhado" com ele como  base positiva de relações amorosas e negativa do fomento do xenofobismo, racismo, etc, e também  impulsor de simples conflitos e "guerras" de comentários. 
Na prática, é a "gasolina" dos raciocínios quer se usem bem quer se usem mal.

Assim, este post não é sobre o quadro mas sobre o conceito de "diferente". Não são considerações estéticas e artísticas, mas considerações sociológicas sobre processos culturais e cognitivos.

As próprias imagens colocadas não pretendem constituir um todo esteticamente harmonioso (como na técnica do "boat bird") mas são simples reforços afecto-cognitivos dirigidos ao "hemisfério direito" do córtex para complemento do texto dirigido ao "hemisfério esquerdo"… e esperando que se integrem. Não pretendem ser arte apenas reforço da mensagem.

Este post é um "recuerdo" desse deambular, o qual me trouxe algumas conclusões.

Como ponto de partida três premissas: diferente, vida e sociedade.

Diferente "cientificamente", é aquilo que não é considerado igual 😎.
A palavra chave nesta definição é "considerado". Na verdade, ser igual ou diferente resulta de uma prioridade mentalmente aceite, isto é, quando se compara dá-se preferência ao semelhante e chama-se igual ou dá-se preferência ao dissemelhante e chama-se diferente:

1 - A baleia é diferente da vaca porque anda na água e a vaca anda em terra;
2 - A baleia é igual à vaca porque ambas respiram no ar e são mamíferos.

Na realidade, todos os seres vivos têm factores iguais e factores diferentes uns dos outros. Por exemplo, não há dois bois iguais e a prova são as diferenças de preço porque são vendidos nas feiras. Os profissionais procuram confirmar se as suas diferenças justificam os preços, mas os amadores compram sem procurar as diferenças porque "bois são bois".

Vida "cientificamente", vida é uma harmonia de diferenças e não uma união de igualdades. Se essa harmonia sofre prejuízos de uma diferença, então a vida vai desaparecendo e a morte aproxima-se:

1 - Os rins são orgãos diferentes do coração e com ele coexistem em harmonia. Se os rins provocam prejuízos, a harmonia do conjunto desaparece numa situação conhecida como doença em que a vida é enfraquecida.

2 - Num transplante de orgãos no nosso corpo é preciso que ele aceite e integre um emigrante, um diferente nos ADN e crie harmonia com ele. 
Na verdade, as células corporais do dador têm um ADN diferente do ADN do receptor. Para não haver rejeição do orgão transplantado pode acontecer que surja uma "quimera humana", ou indivíduo com dois ADN, o que é possível por questões naturais na gestação do embrião ou artificiais no esforço da vida para integrar o diferente.

A vida não é xenofóbica… nela  os diferentes têm possibilidades de integração.

Sociedade "cientificamente", o seu progresso é a criação de diferentes. Quanto mais uma sociedade for evoluída maior é o número de diferentes que contém e mais intensa a sua diferenciação. Estes diferentes são chamados especialistas, nome moderno dos antigos artesãos.
Uma sociedade pouco evoluída é constituída por pessoas indiferenciadas, todas iguais.

1 - Uma ida ao médico significa apenas ir procurar alguém diferente de nós e isso exactamente porque  é diferente. Tem ideias, informações, destrezas, competências, etc, que não temos e por isso precisamos desse diferente. 
Se falar outra língua e tiver nascido noutro país, apenas existe a igualdade de ser da mesma espécie o que é suficiente para ambos, vide  os Médicos sem Fronteiras.

2 - Segundo alguns autores, a paixão tipo Romeu-Julieta acontece exactamente por causa das diferenças atractivas entre ambos que originam um fluir, uma corrente, à semelhança de um rio que a cria pelas diferenças entre a nascente e a foz.  Se essas diferenças desaparecerem fica apenas água estagnada.

Nesta perspectiva, as tentativas de igualdade entre ambos são formas de estagnar o fluir da paixão de que as rotinas são causa e consequência. A harmonia transforma-se em quietude e o equilíbrio em estagnação, na verdade, estar apaixonado pela imagem de si próprio dá segurança mas não dá alegria.

A união é integração de diferentes 
e não é ajuntamento de iguais

Em sociologia, o ajuntamento de iguais chama-se classe lógica, por exemplo, os peões que andam a pé e os automobilistas que guiam carros.

Estes ajuntamentos não precisam de comunicações, nem estruturas, nem "encaixes" de diferenças, etc, eles são uma "mole" amorfa que está junta apenas por coincidência de uma igualdade comum activa e onde diferenças são esquecidas:

Beber água em comum não cria uma união, apenas,
um ajuntamento (classe lógica: os que bebem água)
Para transformar uma classe lógica em grupo é preciso criar aquilo que ela não tem: "comunicação, encaixe de diferenças, estrutura, etc".

Por exemplo, no amorfismo das classes lógicas peões e automobilistas um atropelamento pode "acordá-los" e transformar a indiferença mútua em diferenças em conflito.

Será suficiente reduzir o espaço de cada classe lógica, apertando os seus membros uns contra os outros, criando contactos "ombro-a-ombro". Estes contactos corporais são comunicação com mensagens afectivas de força e propósito. Esta técnica foi usada por grupúsculos em Maio 68, é usada em "manifs" pelos elementos de enquadramento e até pela polícia em táticas erradas de contenção para impedir conflitos... é o mesmo que "apagar fogo com gasolina".

Na verdade, o "ombro-a-ombro" cria comunicação, sensação de pertença, estrutura e objectivo. A energia grupal circula e com palavras de ordem a acção detona-se, os diferentes integram-se e a luta nasce. O ajuntamento passou a união.

As diferenças "encaixam" e não é por coincidência, é por intenção,
é  uma UNIÃO onde se trocam mensagens que se integram entre si.
A vida e as sociedades não são ajuntamentos de iguais, mas sim, são integração de diferentes, não resultam de moles amorfas e "cegas" mas de [… diferentes independentes com dependências mútuas], por exemplo:

- a floresta são árvores juntas mas diferentes entre si (coqueiro e palmeira), 
- o coqueiro tem "partes" juntas mas diferentes entre si (folhas e tronco), 
- o tronco tem partes juntas mas diferentes entre si, casca (suber, tecido morto) e miolo (tecido vivo), 
- o miolo tem partes juntas mas diferentes entre si, xilema (transporte de baixo-cima) em equilíbrio com floema (transporte de cima-baixo);
- etc etc

A vida e as sociedades são um caos organizado por diferentes integrados entre si

Quanto mais evoluída é a sociedade, maior é a sua quantidade de diferentes e menor os seus indiferenciados (vide o actual aumento de escolaridade) e também a diferenciação é cada vez maior  (vide o aumento de especialidades num hospital).

Na antiguidade, a arca de Noé era uma solução lógica pois, para manter e aumentar  os "embarcados", era só deixá-los existir, comer e reproduzir. Reconstruir o perdido não precisava de especialistas diversificados, o Noé e sua família eram suficientes:


Porém,  fazer hoje uma Arca de Noé não tem a mesma lógica,


o problema não é a quantidade-qualidade dos "embarcados", é a quantidade-qualidade das pessoas diferentes necessárias para a reconstrução. A meia dúzia do tempo de Noé tem que ser substituída por centenas de milhares de diferentes, os especialistas necessários.

Por exemplo, para reproduzir um automóvel é necessário milhares de pessoas diferentes com suas diferentes tecnologias (hard e soft), desde a recolha e tratamento de combustíveis, borracha, metais,..., até ao fabrico de componentes electrónicos, eléctricos, vidros,..., sua montagem, aferição e operacionalização.
Só um simples rádio,
Um rádio de 1940
exige dezenas de técnicos e tecnologias diferentes para ser construído.

A sociedade de hoje exige milhares de diferentes especialistas que, em harmonia e consonância de seus actos, precisam de se manter diferentes. Mesmo a sua substituição por robots iguais obriga a existir diferentes a montante e jusante se a sociedade quer continuar a existir. A diferenciação é fundamental para existir união e não ajuntamento.

Na união há integração no conjunto 
e diferença na unidade


No "boat bird" os seus 190 "Azulejos de feltro" em seu conjunto constroem um equilíbrio e uma harmonia, mas cada azulejo tem sua "individualidade própria", uma diferença particular com seu significado. 
São diferentes, continuam diferentes mas são iguais como fazedores do painel

De um certo modo, são uma expressão pictórica da vida e da sociedade pois também lá [… cada unidade tem uma diferença própria mas no conjunto as suas participações integram-se harmoniosamente umas com as outras].

Vendo com lente, dentro dos pequenos azulejos de feltro há diversos mundos a descobrir para além do seu papel no conjunto. No exemplo dos dois pequenos azulejos, num encontra-se o olhar observador do cão e no outro a suave festa da mão ao pássaro.
No conjunto, cada detalhe tem um mundo de diferenças próprias de que, de forma pessoal co-existem sem lutas e sem prejuízos com todos os outros. Assim, é uma sociedade, assim é a Democracia.

A essência da Democracia é a votação e eleição do NOSSO diferente representante para em conjunto com o VOSSO diferente representante, unidos e em harmonia concretizarem a melhor solução para todos. Paradoxalmente, surgiu e adoptou-se que:
a melhor solução para esta integração de diferentes… é serem todos iguais…😡😳 

solução tecnicamente chamada de partido único. 
Se houver muitos partidos cada um constituído por iguais por natureza ou por disciplina partidária, bastará existir um só representante com o respectivo "peso numérico para a votação", correspondente ao número de iguais representados. Será mais económico, debates mais rápidos, menos conflitos e discussões mais óbvias.

Sob ponto de vista lógico, o conceito é divertido porque [… se é partido único já não é parte de nada (partido) é inteiro] ou na linguagem de Duverger é a "Democracia governada", ou seja, deixou de ser Democracia porque por essência a Democracia é governante e para se governante ela precisa do conjunto dos eleitos diferentes.

Do mesmo modo que não se matam doentes quando que não se sabe curá-los, também, se os diferentes eleitos não sabem estar em Democracia, a solução não é matar a democracia é mudar o eleitos.
Quando nos debates democráticos existe luta entre diferentes e ele procuram prejudicar os não-iguais, esse conjunto não é união mas ajuntamento, uma espécie do que existe num armazém de sucata: tudo junto sem união entre si.

Dada a mobilidade destes "painéis de feltro":


eles poderiam ser um bom um bom símbolo de que aquele espaço é para ser uma DEMOCRACIA:


e se não tiver sido uma Democracia, o coordenador da reunião mandaria recolher o símbolo:




segunda-feira, 29 de maio de 2017

A boneca aprisionada

A boneca triste
Uma manhã triste no café pois vivia-se uma 2ª feira despovoada, mesas vazias, clientes fugidios.

Numa mesa afastada, uma mãe, trinta anos(??), corpo amorfo e "embotado" mas com cara tensa e vincada, rotinadamente, "aperfeiçoa" a filha de um ano, sentada sobre a mesa.

Mecânica e suavemente, alisa a renda do vestido, corrige um cabelo fora do sítio, limpa um sapato e, com gesto brusco, ajeita-lhe um braço… e, assim, o tempo passa numa constante correcção de pormenores… mas, e a criança?

Imóvel, estática e quieta, de expressão parada, olha em frente e devagar mas sem olhar, a mão aproxima-se da caixa dos guardanapos. Com gesto rápido, a mãe afasta a caixa e põe-lhe o braço, "como deve ser" na posição anterior. Fiquei a pensar, seria autista????

Um estranho (60 anos??) senta-se na mesa ao lado com jornais e revistas. A criança e o estranho olham um para o outro, ela estica a mão na sua direcção, palra e ri-se. Ele dá-lhe um postal que tira da revista e que ela aceita e depois oferece. Começou uma brincadeira de "toma lá, dá cá", em que ele se ri e ela também… divertem-se. O "autismo" desapareceu.

Uhau…afinal não era autista... era só uma "boneca aprisionada", engaiolada.

Quando trabalhei no Hospital Júlio de Matos, no Centro de Saúde Mental Infantil de Lisboa, encontrei crianças com comportamentos semelhantes, mas não tinham esta instantânea alegria e disponibilidade com estranhos. 

Aqui, não me parecia que fosse a mesma situação pois não devia ser um problema interior mas apenas o resultado de um problema exterior, uma defesa instintiva de "prisioneiro versus o perseguidor-carcereiro", reconhecível em crianças, adultos e animais (particularmente cães) nesta situação.

Entretanto, a mãe, "agitada", dizia "- Desculpe! Desculpe! Querida,.. olha para mim, olha para mim,..." mas a criança não ligava, continuava a sorrir e a brincar ao simples "toma lá, dá cá". Tinha encontrado um amigo.

A minha melancólica estranheza foi que ele, um estranho, era mais pai do que ela era mãe e, principalmente, porque a criança, ainda sem saber falar, já sabia reconhecer e optar pela diferença!!!
Na verdade, desde a nascença que o afecto se reconhece e sente pela pele, quer nos humanos quer nos animais ou, como se diz na cultura USA, o afecto existe "by the skin and not by the book", isto é, existe "pela pele e não pela cabeça com suas regras".

Raizupartiça,…o que acontece aos humanos?

A minha manhã de relaxar "conversando" com a torrada tinha acabado. Regressei a casa e fui "desabafar' com o tablet.

Na verdade, estas inovações modernas substituem com eficácia o confessionário e/ou o psicanalista, pois o tablet não me sugeriu que o problema era meu, dado que ninguém tinha reparado, nem me impôs penitências a cumprir, nem comprimidos a tomar, nem traumas de infância a pesquisar.

Em consequência, ficou-me o remorso de ter consentido pois não usufruí daquelas "bengalas" de SOS (confissão ou psicanálise) para o aliviar… assim, lá tenho que me aguentar a mim próprio.



sábado, 27 de maio de 2017

Avó e neta


Café da manhã, na esplanada a neta choramingava porque queria andar a passear e a avó queria que ela estivesse "sentada como uma senhora". Entre "brincos e chorincos" a luta continuava e a avó "atacou" dizendo:

- Se não estás sossegada .... eu já não gosto de ti!

A neta resolveu a questão:

- Não faz mal ... vou ao supermercado e compro outra!

A avó ficou a choramingar e a neta foi passear pela esplanada!

Fiquei espantado, como é que uma criança de 7 a 8 anos adquiriu técnicas correctas de luta contra a perseguição-assédio a controlar a vida do outro.

Na verdade, o ataque da avó foi uma técnica muito usada nestes casos e chama-se "chantagem afetiva". 
A defesa da neta é uma técnica raramente usada por adultos pois, nestes casos, limitam-se a guerras de impropérios e à primária argumentação do "disco rachado", ou seja, dizem sempre a mesma coisa de forma monocórdica, i.é., tocam sempre a mesma corda (vide debates TV).

Pelo contrário, a neta com seus poucos anos de idade, usou a "saída pela tangente",  com um "go in" incorporado que funcionou. 
O que mais me espantou foi a continuação. Na verdade, o choro da avó não funcionou como pressão afectiva para submissão, pois a neta usou a técnica do "tu não existes", técnica preferencialmente aconselhada nestes casos de "chantagem psy" quer seja cognitiva ou afectiva, que é a preferida dos perseguidores/assediadores ou, dizendo em francês, dos "emmerdeurs" (a tradução portuguesa não é elegante mas, intuitivamente, é óbvia).

No caso da neta, ela usou o método da "saída pela tangente" que consiste em, num ponto da lógica usada pelo outro, fazer uma inflexão noutra lógica diferente que o coloca fora da jogada e resolve o problema.
Ela usou a asserção "recurso estragado substitui-se no supermercado", eventualmente aplicado na família para alimentos estragados e, criativamente, utilizado aqui.

Por sua vez, sem o saber, detonou na avó um "go in". Esta técnica associa um processo cognitivo com um afectivo, em que este detona um "curto circuito" mental  susceptivo de bloquear o sistema, ficando este sem programa operativo. É uma espécie do "écran azul" do windows quando fica inoperativo e obriga a reiniciar.
Exemplo:

Um dia na FNAC, entrei comendo uma pequena tablete de cereais. De repente ouvi atrás de mim um "berro" dizendo "Ehhhh… não pode estar a comer". Era o porteiro, híbrido com segurança, que me apontava o dedo. 
Em vez do método usual de debate político (vide 25 Mai 17) resolvi conversar ao estilo de dois adeptos de futebol do mesmo clube.

Voltei atrás e perguntei "suavemente" - O que chama comer?.
Os olhos "pararam" e ficou com o ecran azul do windows à procura de programa. 
Resolvi ajudar:
- É dar dentadas ou mastigar?
O azul do programa mental ficou cinzento escuro, a alternativa não era óbvia pois na verdade era um dilema (ou… ou). Fiquei à espera… com a esperança que dissesse TODOS ao estilo do Vasco Moscoso de Aragão dos "Velhos Marinheiros" de Jorge Amado… não o fez.

Resolvi ajudar com um trilema e acrescentei: - Se guardar na algibeira resolve?
Como dois amigos do mesmo clube, respondeu também "suavemente": - "siiimmm". Agradeci, dei uma dentada à frente dele, comecei a mastigar, acenei um adeus e fui-me embora. Ele continuava com o ecran azul.

No caso da avó e neta, esta não fez "go in", ele aconteceu. Foi a própria avó em auto-serviço que acrescentou esse factor ao pensar "não gosta de mim… sou de deitar fora". Assim, deu-se um curto circuito, fez-se ecran azul, ficou sem energia e precisou re-iniciar o sistema reavaliando a situação.

O que me espantou foi a continuidade da acção da neta, pois fez a técnica aconselhada pelos peritos para os casos de assédio. É a técnica do "tu não existes".

É uma técnica simples e de fácil aplicação. Constitui criar uma atitude na qual o perseguidor (narcisista) se torna transparente. É olhado mas não é visto, é ouvido como ruído, não é respondido, não é inter-agido pois não tem lugar nos actos do outro em que, por ex., está "distraído" vendo o telemóvel. 

A maior "dor" de um perseguidor narcisista não é ser combatido, argumentado, conflituado pois isso é a sua "alegria", o seu prazer, o seu objectivo.
O que lhe dói é "não existir", não ser polo de relação, não ser considerado interlocutor e, mais doloroso ainda, é nem sequer ser ignorado ou recusado, pois estas alternativas são ainda conexões, apesar de pela negativa.
A solução é simplesmente criar um "vácuo relacional" em que as interacções que emite não têm polo receptor qualquer que seja o formato, canal, mensagem, etc. Como exemplo e treino é experimentar, ao espelho, fazer o olhar de quem está a ver mas a pensar noutra coisa, ou seja, quem está à frente é apenas um objecto da paisagem,  mesmo se falante.

Na continuação, o que a criança fez foi não se deixar apanhar pela chantagem afectiva das lágrimas e tristeza (reforço da primeira tentativa) e foi passear. 

Eu fiquei à espera do resultado pois queria saber se haveria a segunda etapa (B). Não houve, ela voltou contente, as relações estavam normais, ela saía para ver a montra da tabacaria e o "sentar como uma senhora" não atacou mais. As duas pareciam felizes.

Afinal isto do educar vale para os dois lados… felizmente.

quinta-feira, 25 de maio de 2017

Convivialidade e a "dança das mesas"


Hoje, como é hábito, tomei o pequeno almoço num café-pastelaria do bairro, bom café, bons bolos, bom pão e almoços rápidos. Os habituais clientes são vizinhos, reformados ou não, trabalhadores do hospital próximo ou veraneantes da praia ao lado que aqui se encontram e se relacionam ao estilo de passageiros habituais de metro ou de comboio.

O café tem dez mesas no interior e outras dez na esplanada, das quais os habituais clientes têm as suas preferidas e, na sua falta, as desconsoladamente usadas para tomar café, ler emails, facebook, jornais, revistas, livros ou conversar.

Hoje aconteceu algo inesperado que me fez olhar e pensar de modo diferente o quotidiano habitual.

Cheguei ao café ligeiramente à frente de uma cliente para o seu pequeno lanche, com um repousante intervalo a meio da manhã 
Quando entrei, só havia duas mesas, uma era semi-desconsolada e outra semi-preferida, pois ambas eram no meio da sala sem os confortáveis peitoris das janelas para pôr o livro, revistas, mala, tablet, etc, o que obrigava a usar cadeiras debaixo da mesa. 

A mesa semi-preferida seria a minha escolha, porém a cliente atrás de mim era lá que se costumava sentar, longe do caminho e com vista para o exterior, saboreando assim alguns minutos relaxantes. Se estava ocupada ia para o balcão, comia e ia-se embora.

Como costumo ficar no café cerca de uma hora, comendo, lendo e escrevendo, decidi deixar essa mesa para ela e sentar-me na outra, procurando mudar logo que vagasse alguma das preferidas.

O estranho é que essa cliente quando passou por mim, além dos costumados ligeiros "bons dias", disse-me claramente "obrigado".
Fiquei admirado e a pensar porquê. O que se tinha passado? Eu apenas me tinha sentado numa mesa.

Abri o tablet, fui comendo, pensando e listando "recuerdos" de situações nesses pequenos almoços.

Ao fim de algum tempo a conclusão foi interessante pois percebi que tenho andado "mergulhado" em inter-acções activas, operacionais e comunicativas, com uma consciência zombie do que vivia.
Tenho sido um "sonolento semi-vivo em terra conhecida" quando afinal sou um "membro activo de uma comunidade desconhecida", cheia de partilhas e sincronismos.

Fiquei "zangado" comigo próprio pois, além de detestar ser zombie, um dos meus traumas (e tristeza existencial) é, várias vezes no passado, ter vivido situações para mim significativas e marcantes mas sentidas com a superficial rotina de serem normais e eu apenas um espectador distraído.
Na verdade, só alguns anos depois, percebi essa minha "fraude existencial" de [...ter vivido um hoje morrido…], muito pior do que […ter matado esse hoje à nascença…].

O budismo zen, com menos poesia e mais lógica, tem uma história sobre esta "fraude existencial", história essa que gosto muito e recordo muitas vezes.
Parafraseando:

[Num dia de calor, alguém veste fato de banho, dá mergulhos na água, sai, senta-se e passado algum tempo fica admirado por estar todo molhado.]

A opacidade ao "aqui-agora"do presente, perdendo o que está acontecendo, é como um turista que regressa com milhares de fotografias de por onde andou e sem nenhuns "recuerdos" existenciais do que lhe aconteceu.
Ou seja, é andar na vida como zombies, chorando em filmes e telenovelas que repetem cenas da família, da vida e do trabalho mas por onde passa (e vai continuar a passar) impunes e inócuamente.
Só, talvez na velhice se vai recordar essa vida morrida e chorando ao não conseguir "re-encontrar" o que se deixou fugir.

No caso dos pequenos-almoços e do café, o que descobri foi que os frequentadores habituais têm duas ou três mesas preferidas que ocupam sempre que podem, e as preferências não são as mesmas para cada um de nós. Aos sábados e domingos de manhã é tempo de crise pois há enchentes e a escolha não é fácil, pelo que  cada um se senta onde pode.

Depois, quando há uma vaga nas preferências, alguém agarra no seu jornal, livro, café, etc, e muda de mesa, o que origina que outro faz o mesmo para aquela que acabou de vagar e assim sucessivamente, até tudo estabilizar.
É uma autêntica "DANÇA DE MESAS" em que todos rodam em função das suas preferências, muitas vezes ajudados pelos empregados e/ou pelos próprios clientes.

Como curiosidade, alguns dos "recuerdos" que recordei:

- Ás vezes, quando um destes "habituais" chega e a "sua" mesa está vaga sem concorrentes, o empregado já lá colocou parte do seu pedido habitual;

- Já me tem acontecido (e também feito) que quando um destes "habituais" chega, outro que está de saída faz sinal, levanta-se e vai pagar ao balcão. Não é obrigação, é apenas, por delicadeza, um reconhecimento pessoal: [...tu existes, eu confirmo e deixo-te o lugar];

- Outro dia fiquei a ler até ao meio dia, o café estava praticamente vazio e o empregado veio falar comigo, perguntando se podia passar para outra mesa onde costumo também ficar que ele levava tudo. Uma vizinha reformada de 70/80 anos costuma almoçar na mesa onde eu estava para ver a animação da esplanada, e estava tristemente sentada noutro lado. Aceitei e quando saí fez-me um discreto sorriso.

- Outra vez um cliente que estava na esplanada veio ao balcão pedir um isqueiro. A empregada não tinha mas sorriu e pela montra indicou outro cliente na esplanada que tinha e não se importava de emprestar. Curioso fiquei a ver o resultado… funcionou. Quando saí e fui pagar dei-lhe os parabéns, admirou-se pois não se se lembrava de nada, na verdade era a confusão do domingo de manhã.

- Noutra manhã, vi o empregado sair, ir à rua, chamar um cliente que no passeio se ia embora, perguntando-lhe se ainda voltava. Ele disse que não, então o empregado respondeu que era melhor voltar porque outro cliente tinha-lhe dado a carteira que ele deixara na mesa. Ele regressou e os três ficaram agradavelmente na conversa.

A questão que se põe é se isto é um "Big brother" e uma "coscuvilhice de controlo" ou, por outro lado, é uma cumplicidade de empatia social e sincronismo?

É a velha questão se [...dar as mãos é protecção-apoio ou controlo-prisão…]:

Queixava-se a mulher ao marido:
- Quando namorávamos em casa de meus pais, estavas sempre a segurar-me as mãos. Agora sentas-te aí longe!!
Respondia o marido:
-É que dantes tinhas a mania de tocar piano!!!

Na verdade, a fronteira entre a proteccão e alter-ismo (outro-ismo, altruísmo) e o controlo e ego-ismo (eu-ismo) é ténue e difícil de observar, todavia os seus sinais são sempre óbvios e claramente identificáveis. Daqui resulta que, normalmente, só se reconhece a prisão e o controlo quando já é tarde e se está bem emaranhado. Por exemplo, protecção ou controlo:

"Gosta muito de mim, nunca me deixa ir sozinha para lado nenhum!!"

O critério para diagnóstico é simples, na protecção e altruísmo a área de liberdade cresce, no controlo e egoísmo a área de liberdade reduz. É só criar eventos críticos para teste, as reacções nunca enganam.

Aplicar pode ser difícil, pois há vários "bugs" culturais de "baralhamento"[*], por exemplo,  é preciso não confundir a "existência de bem" com a "ausência de mal" (ou vice versa), pois uma não implica a outra. 
Exemplo:

- o facto de "não odiar não significa gostar" e o facto de "não gostar não significa odiar";
- o facto de "não estar presa não significa estar livre" e o facto de "não estar livre não significa estar presa;"
- o facto de "não ser ditadura não significa democracia" e o facto de "não ser democracia não significa ditadura";
- etc etc;
[*] - ver efeito Dunning-Kruger

No caso da "dança das mesas", a opção entre convivialidade social ou controlo de coscuvilhice é simples, pois vive-se na fronteira entre os dois e quando se avança para coscuvilhice bloqueia-se, quando se propõe convivialidade social aceita-se. 
A necessidade de viver lúcido não é "chatice" é como procurar água e alimento… tem que ser feito… pois [… viver livre por dependência não é independência é estar cegamente preso…]

O método aconselha a regra das 3 etapas:

A - Na primeira vez, cai quem não sabe (ham !…ham !… o quê?);
B - Na segunda vez, cai quem quer (uff... uff… outra vez?);
C - Na terceira vez, cai quem é parvo (grrr !.. grrr !… só a mim!).

PS - Por enquanto, penso (?!!?) que vivo na convivialidade social mas já sofri alguns ataques de redução da minha liberdade, por exemplo, imposições de amizade, ou de presença, ou de conversa, ou de opiniões, etc, sempre com a intenção de se ficar com o hábito relacional de vida controlada. 
Foram todas "amigavelmente" 😎 resolvidas e não se repetiramisto é, não houve etapas B, todavia, também "inexplicavelmente" 😇 passaram a ser um convívio demasiado " formal" e distante, ao estilo de "tu não existes".


quinta-feira, 18 de maio de 2017

Pensar o que somos versus o que temos

Quatro perguntas e uma história...

1ª pergunta

Como ponto de partida, e como poderia dizer um discípulo de La Palisse... "se tivesse nascido noutro tempo e noutro paísEU não seria EU, mas sim, outro EU diferente".

Mas poderia também pensar... "em qualquer época e país, Eu seria sempre o mesmo… só teria linguagem, comportamentos, hábitos, etc…diferentes",

e por exemplo, EU em épocas diferentes... seria "O" mesmo EU???


Numa palavra, […Eu sou o que sou ...ou … Eu sou aquilo que "adquiri" e "tenho" ??...]

2ª pergunta 

...que não se "cala" e me espicaça: "Com tudo o que sou e o que tenho, afinal onde está o Eu???

Uma história:

O Manel tem um problema cardíaco e entra no Hospital para fazer um transplante com o coração que era da Maria. A operação foi um êxito e o Manel sai saudável com o novo coração.

A tecnologia evolui e a medicina também.

O Manel tem um problema cerebral e entra no Hospital para fazer um transplante com o cérebro que era da Maria. A operação é um êxito e o Manel sai saudável com o novo cérebro.

Na perspectiva da pergunta anterior, surge outra pergunta:

Depois da operação, quem sai do hospital é o Manel com o cérebro da Maria ou é a Maria com o corpo do Manel ??

Por outras palavras, o Manel continua vivo ou agora quem está vivo é a Maria "undercover" (disfarçada) sob o corpo que era o Manel???

A história pode ser ficção cientifica mas, se se tornar tecnicamente possível, os debates políticos nos partidos (quem é o líder?), teológicos nas religiões (quem é o pecador?), jurídicos nos tribunais (quem é o culpado?), económicos nos negócios (quem é o dono?) e amorosos nas famílias (quem me beija?) vão ser sérios e animados.

Continuando a prospecção de ideias, as perguntas "saltam", por ex., quando o Manel faz uma festa ou dá uma palmada a alguém, é a SUA mão que decide o que fazer ou é o SEU cérebro que opta e  "manda" a mão concretizar? 
Um filme:


Como se vê, é a mão do Miguel que executa a acção mas é o cérebro da Sam que decide o que fazer (festa ou palmada???) pois o cérebro do Miguel ficou "fora de jogo"… e, por graça dos deuses, ele fica calmo, feliz e não-consciente do que a SUA mão anda a fazer e até agradece aos qu'ridos lideres a sorte que tem de decidirem por ele.

Huau…!!! Huau…!!!, será isto apenas uma forma física (ligação-por-cabo) do que se chama "obedecer a quem manda"????, ou, por outras palavras, mandar é só...

[…fazer é o outro "engolir" as minhas decisões e executá-las em substituição das suas]

ou seja, é este mecanismo que, em termos psicológicos, se chama ser autoritário-obediente, em termos sociais ser ditadura-repressão e em termos culturais ser líder-liderado?

Bom, na verdade e na prática, apesar de não ser ficção cientifica, não andamos por aí "ligados-por-cabo" uns aos outros com relações de mandar-obedecer.

3ª pergunta

...e se for "ligação-wireless"?

Um filme:

Huau…!!! Huau…!!!, afinal parece que também há  "ligação-wireless" e não é ficção científica.

Bom, na verdade e na prática, apesar de não ser ficção cientifica, não andamos por aí a sofrer implantes cerebrais para se ficar "ligados-por-wireless"  em relações mandar-obedecer*.

[*] - Por enquanto (!!??)


4ª pergunta,

...e se for "ligação-por-educação" ???

Na verdade, educar é o educador incorporar padrões na mente dos educáveis, ou seja, uma espécie de implantes cerebrais de execução de comportamentos desejados, por exemplo, come carne versus não come carne, adoras este deus versus não adoras este deus, emigrante é bom versus emigrante é mau, saia curta versus saia comprida, etc. 
O nome técnico (diplomata) destes implantes cerebrais virtuais chama-se culturização nos bem-falantes, educação na sociedade, missionação na religião, marketing nos negócios, propaganda na política, o-que-deve-ser no fanatismo.

Todavia, de um modo simplex, são apenas automatismos comportamentais pré-estabelecidos que temos a par do que somos. A linguagem é um destes automatismos adquiridos:

No restaurante, dizia o dono perante o cliente francês e o inglês:
- Que chamem ao café: "cafê" ou "cófi"… percebe-se que se enganem, mas que chamem "lê" ou "milque" ao leite quando se sabe perfeitamente que é LEITE,... é uma parvoíce!![*]

[*] - Pode parecer uma anedota de implantes cerebrais virtuais mas, jornal 15 Mai 17, um responsável político diz que "…as mulheres não podem trabalhar de saia travada". Considerando que a saia travada obriga a ter as pernas juntas, qual era o trabalho no emprego em que ele estava pensando? Como acrescentou que [...a saia tem que ser larga…] os implantes culturais que ele usa devem estar bem enraizados acerca do trabalho das mulheres.

Uma história de implantes cerebrais virtuais:

O Manel trabalha numa empresa e namora a Maria. Combinaram, pelas 18:00 horas, horário normal de saída, irem passear e jantar fora.
À tarde, o chefe do Manel diz-lhe que tem que ficar até às 23:00 horas para terminar o trabalho.

O que faz o Manel sai às 18:00 e decepciona o chefe ou sai às 23:00 horas e decepciona a Maria?

A - A situação pode ser simples:

Por educação, o Manel tem um implante virtual no cérebro que decide "ao chefe nunca se diz não, não pensas mas fazes" e automaticamente bloqueia o seu sistema de tomada de decisões. 
córtex fica fora-de-jogo e, sem angústias nem hesitações, "ordens são ordens"[*] pelo que a sua decisão de sair e jantar com a Maria desaparece e a decisão do chefe ocupa o lugar.
O chefe é um líder e o Manel é um obediente.

[*] - Na vida militar este reflexo condicionador (Pavloviano?) tem um segundo reflexo condicionado, enxertado para reforço se há hesitações, é a aprendizagem "É uma ordem directa". Em 90% dos casos o córtex paralisa e bloqueia.
A recruta na vida militar pretende inserir esses dois reflexos condicionados a par de um terceiro da "obediência à voz única" vinda do símbolo de hierarquia, galão (oficial) ou divisa (sargento). (ver psicologia de re-educação e treino militar e outros)
A actividade diária de "ordem unida" (marchar ritmicamente em grupo formatado, cumprindo ordens) tem esses objectivos, reforçando a relação "normal" instrutor-recruta "a mão é tua, o cérebro é meu".


B - A situação pode ser complexa:

Por educação, o Manel mantém o seu córtex em pleno funcionamento[*]. 
Neste caso, qualquer uma das decisões tem diferentes vantagens, inconvenientes, pontos fortes e pontos fracos para ele e Maria, quer no momento presente quer no futuro. A integração de todas essas variáveis origina alternativas de diferentes custos e lucros… É PRECISO PENSAR E DECIDIR uma, outra ou aqueloutra das muitas possíveis, pois as probabilidades existentes são muitas (metodologia decisória "What If…"). 

Não imagino o que ele fará, mas o único erro possível é a decisão não ser sua. Por outras palavras, se ficar a trabalhar não é porque o chefe mandou é porque ele PENSOU e decidiu ficar.

[*] - Da mosca ao ser humano (sobre)viver é decidir, i.é., corro-não corro, bebo-não bebo, luto-fujo,etc. Em cada segundo, tomamos decisões, optamos pelo mais correcto, recusamos o mais incorrecto, desde respirar a não-respirar se gases, debaixo água, etc.
Neste sentido, educar é preparar para a vida, ou seja, é preparar para tomar decisões. Educar "amarfanhando" a capacidade de tomar decisões e potenciando o córtex bloqueado (i.é., obedecer zombie "porque-sim") é despreparar para a vida.


A decisão-zombie "passadeira-atravesso" dá multa, tem que ser decisão-pensada "passadeira: atravesso? Sim ou Não??".

Um filme:


Bom, na verdade e na prática, a "ligação-por-educação" não é ficção cientifica, ela anda à solta "aí fora", na família, nos amigos, no trabalho, na sociedade.

Um história

Um dia em África,

desembarcando numa aldeia piscatória isolada, "esquecida" na costa, encontrei um homem (50 anos?) "derramado" contra uma árvores, quieto e abúlico, olhando o ar. 
Tinha um aspecto adoentado e, apesar de ser de cor negra, parecia-me cinzento. Perguntei se estava doente e o que tinha.  Disseram-me que não estava doente, que nada se podia fazer, era o "abico"*

*- Abico: mau olhado(?), bruxedo pelo nome (*), feitiço (?), quebranto (?)

Procurei saber o que era isso, mas a resposta foi estranha. Disseram-me que, quando se nasce, as mães dão dois nomes, o nome real que fica secreto entre ela e o filho(a) e o nome conhecido de todos.
Se alguém souber o nome secreto poderá fazer bruxedo para ele, é fazer "renascer para a morte". Isso é o "abico". Nestes casos, só há que esperar pela morte. 
Aquele homem, estava com o "abico", estava morrendo, nada se podia fazer.

Espantado olhava para ele e pensava que aquilo não era suicídio, nem "morte matada, mas morte morrida", como diria o poeta[*], pois tinha desistido de estar vivo. Mais tarde, percebi que era apenas simples "implante cerebral virtual" que aquela cultura instalava nos filhos.

[*]- João Cabral de Melo Neto, "Morte e vida severina".

Durante os anos que lá estive, em algumas povoações ao longo da costa com pessoas conhecidas, ás vezes perguntava se eles também tinham nome secreto. Ou não respondiam ou diziam que sim e, curiosos, perguntavam se eu tinha. Quando respondia que não, olhavam-me com pena e concluíam "não anda protegido".

Muito mais tarde, ao estudar "mentalizações culturais" relacionei com o implante virtual "mau olhado" da cultura tradicional do Portugal profundo. Nos meus recuerdos da infância lembro-me de "espreitadelas" de rezas para tirar "mau olhado" feitas por "especialistas".

Tudo se resumia a uma lenga-lenga que se dizia enquanto se deitavam gotas de azeite tiradas de uma colher sobre água quieta num prato. Quando funcionava, o azeite dissolvia-se na água e desaparecia, se não funcionava ficavam as gotas de azeite bem demarcadas sobre a água, vendo-se perfeitamente a sombra no fundo.

Já adolescente, no liceu por causa da aulas de Físico-Químicas, andei uma semana a deitar azeite na água (sem lenga-lengas) mas nunca consegui que elas desaparecessem. Acabei por concluir (com ajuda do professor num intervalo) que era um problema de luz, pois as bolhas estavam, mas as sombras desapareciam. Descansei… sempre me irritou baralharem-me os neurónios.

Como conclusão, nós somos o que somos somados ao que temos e realmente estamos cheios de implantes virtuais que, numa linguagem do senso comum, são as "manias" da sociedade em que vivemos. 
O paradoxo é que não podemos viver sem elas e temos que transmiti-las aos nossos filhos. O que podemos, e devemos, é não destruir mas potenciar a capacidade deles tomarem decisões[*], capacidade essa com que a natureza naturalmente nos equipou. Se o conseguirmos isso chama-se DEMOCRACIA.

[*] - A desculpa de educar não justifica destruir essa capacidade.