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terça-feira, 28 de outubro de 2014

Mentiras e verdades

As relações humanas são dinamizadas pela dança de mentiras e verdades, a caminho da descoberta da lucidez.
Uma pequena história:

Na esplanada, uma conversa entre a mãe e o filho de 5 anos:
- "Mãe, é verdade eu vi...!"
- "João, não digas mentiras, é impossível..."

Com a mãe já zangada e a criança choramingando, o "diálogo" continuou, 
- "Mãe, já disse, é verdade!!! Eu vi...!"
- "João, não digas MAIS mentiras, é impossível..."

Nesta conversa pouco dialogante anda por lá um "bug" aos saltos, ao estilo "disco rachado" em que [...não se sai do mesmo...], cada um repetindo a sua verdade.

Na prática existem sempre 4 alternativas:


1 - É verdade porque acredita e é mentira porque não expressa a realidade;
2 - É mentira porque finge acreditar e é verdade porque expressa a realidade;
3 - É verdade porque acredita e é verdade porque expressa a realidade;
4 - É mentira porque finge acreditar e é mentira porque não expressa a realidade;

Quando dois crentes (políticos, religiosos, científicos, familiares, etc), fanáticos ou não, discutem uma questão normalmente situam-se só na zona "A" e não saem de lá. Porém, se um deles apenas finge acreditar, normalmente, o diálogo entra na zona "B". 

Na minha experiência pessoal prefiro argumentar com um mentiroso (sempre flexível na zona "A") do que com um fanático (sempre rígido na zona "A") pois, não só é mais divertido e menos irritante, como as conclusões são mais proveitosas pois a zona "B", onde vive a lucidez, é sempre pesquisada.

Exemplo de uma verdade-mentirosa ... porque acredita e porque aldraba o real:



quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Falar cãozês

Ontem fui jantar a casa do meu filho.

Cheguei, toquei à campainha na porta exterior e o cão começou a ladrar.
Abriram a porta, entrei, fechei a porta e, entretanto, a porta de casa abriu-se e o cão saiu a correr aos saltos e ladradelas e, tudo intervalado de lambidelas, deu-me as boas-vindas.

De repente na casa ao lado, por cima do muro, outro cão começou a ladrar. 


As boas-vindas pararam, virou-se para lá e ladrou também, mas num tom diferente, e depois voltou às boas-vindas.

Esta cena repetiu-se mais 2 vezes e o outro cão calou-se. 
Entretanto este acalmou-se e, entre abanadelas de cauda, entrámos em casa.

Fiquei a pensar, -" Mas a que raio ...#&#@!!.#... de conversa de ladradelas eu estive a assistir...??"



Em casa, conversando sobre isso, fiquei a saber que é normal quando tocam a campainha na porta exterior e abrem a porta de casa para ele sair, pela mudança de ladrar sabem se a pessoa que está na rua é conhecida ou não.

Parece-me lógico!!!

O ladrar é a consequência da recepção de um sinal exterior, portanto não é de estranhar que as características do significado desse sinal influenciem as características do ladrar provocado.

Lembrei-me que quando num país estranho e desconhecendo a língua, se bater à porta de uma casa só pelo som das palavras ditas em resposta é possível calcular se a seguir virá um sorriso ou uma panela de sopa atirada com força.

Então parece que para entender uma conversa existem duas vias complementares, uma é entender a forma mesmo desconhecendo a língua e a outra é entender o conteúdo ao reconhecer as  palavras.

Quando em Inglaterra, recordo-me de alguns amigos que, não sabendo falar português, me diziam que lhes parecia que o português era sempre o mesmo som com ligeiras variantes. 

É interessante porque na altura comecei a reparar que os diplomatas estrangeiros quando na TV falavam português normalmente falavam brasileiro. Parece que a diferença estava em que o brasileiro tem muitas vogais abertas (tónicas??) e o português baixa as vogais (átonas??), obrigando a ter um ouvido treinado nesse estilo "hipo-tónico".

Verdade ou mentira quando nós, os portugueses, queríamos falar sem ser entendidos por estrangeiros que sabiam português, falávamos sempre um português contínuo e monótono sem tónicas... e funcionava. Depois pedíamos desculpa e dizia-se a frase em inglês. 
Na prática era um processo simples de impedir compreensão através do entendimento da palavra-som.

O meu Projecto, no caso dos cães, é:

A - quando os ouvir ladrar uns para os outros ou para estranhos, vou tentar ver se reconheço diferenças de forma e procurar entender conteúdos mesmo sem saber as palavras dessa "língua". 

Ficarei muito contente se, não entendendo o que dizem, pelo menos entendo que dizem "coisas" diferentes e ficar a saber se entram, ou não, em "disco rachado" [...Obs: é a técnica de quando numa conversa-conflito se repete sempre a mesma frase ou ideia, por "vidrado" nelas...].

B - no que respeita ao conteúdo vou tentar usar a vulgar técnica de imitar os seus sons (usada por ex., no caso de caçadores) e quando encontrar um cão desconhecido vou tentar ladrar e ver o que ele faz. Quando estatisticamente conseguir unir um som e uma acção terei uma possível palavra de cãozês.

PS - Se o cão consegue entender o significado do som das minhas palavras ("reagindo") também devo ser capaz de entender o som das "palavras" dele... dizem que somos mais inteligentes do que eles... ou não somos???

PS - Espero que, sem o saber, o meu ladrar não seja uma ofensa e ainda apanhe uma mordidela, mas isto são os riscos das "experiências cientificas".


terça-feira, 7 de outubro de 2014

Três medos

Segundo estudos feitos, os seres humanos têm trinta três medos muito vulgares e em que os dez primeiros são:


01. Medo de andar de avião
02. Medo de falar em público
03. Medo de alturas
04. Medo de escuro
05. Medo de intimidade
06. Medo de morrer
07. Medo de insucesso
08. Medo de rejeição
09. Medo de aranhas
10. Medo de comprometimento


Procurando um padrão, e referenciando-me à Social Cognitive Neuroscience, penso que se podem agrupar no medo orgânico de morrer/ficar ferido (01, 03, 04, 06, 09), isto é, referente à sobrevivência no corpo e conectado com a dor física,  e o medo social (02, 05, 07, 08, 10) referente à sobrevivência no grupo e conectado com a dor social.

Apesar de Maslow considerar a necessidade fisiológica como a base da pirâmide das necessidades e sobre a qual todas se apoiam:
Hierarquia das Necessidades de Maslow (original)
talvez haja necessidade de construir outra perspectiva, pois

após o nascimento, e num período curto ou longo, quer com bolsa marsupial ou directamente no grupo, quase todos os recém-nascidos precisam de algum tempo num útero social onde acabem de maturar para poder passar a sobreviver autónomos.
Assim, a necessidade social antecede a sobrevivência física.

Realmente, se essa necessidade social para se alimentar e/ou  proteger (safety) não é realizada, a necessidade fisiológica não é necessária porque entretanto o vivente já morreu.

Assim, parece haver um "bug" na pirâmide das necessidades de Maslow pois é o social que suporta os níveis superiores :

Hierarquia das Necessidades de Maslow (reformulada)
Olhando para a lista das 10 primeiras necessidades mais vulgares, é interessante o medo de falar em público se encontrar em 2º lugar, logo a seguir ao medo de desastre grave (morrer)... porém parece-me existir aqui um certo mistério.



Na verdade, a não ser que 
o indivíduo fale sozinho
ou para o espelho,

falar é sempre feito em público..!!!!



Assim, quando se dão conselhos de, para não ter medo de falar em público, ser preciso treinar falando sozinho e/ou com um espelho [conselho seguido por muitos jovens e adultos] é como querer ensinar a nadar fora de água.

Exemplo da Técnica científica (???) de aprender a nadar sem água:

Repare-se na correcta posição de braços, pernas e principalmente mãos no estilo "crawl".
Porém, apesar de nadar no banco poder ser divertido e fazer ginástica, não é nadar pois falta a água e o seu necessário "controlo respiratório e  flutuabilidade" base da natação. 

PS - O cão não sabe crawl nem bruços e consegue nadar... e os bebés também.

Do mesmo modo, treinar o "falar em público" ao espelho também pode ser divertido e ginasticar as cordas vocais, mas é "perigoso" pois focaliza o indivíduo em si próprio e no discurso e "falar em público" é centrar-se na audiência.
Por outro lado, centrar-se no "discurso", como na representação teatral centrada no personagem e no drama, também é um desvio"perigoso" pois não me parece que ter aulas de teatro para melhorar a conversa com os filhos e cônjuge tenha qualquer resultado.

Um exemplo...

No Café, 2 casais de reformados conversam muito implicados.
Cada um falava para um público de três pessoas e nenhum deles sentia qualquer medo de falar em público e não me parece que tivessem treinado ao espelho, em casa.

Chegou uma amiga com duas pessoas desconhecidas que apresentou, juntaram-se mesas e a conversa fluiu num público de 4 conhecidos e 2 desconhecidos. Nada se alterou, a conversa dançava entre todos e o medo de falar em público não apareceu.

O interessante é que não conversavam todos da mesma maneira, uns usavam mais a vocalização e outros apenas sinais não verbais, mas todos participavam. 

De repente percebi que quem vocalizava gastava mais de 50% do seu esforço, não nas palavras que dizia, mas sim, nas reacções que obtinha do grupo e nas reacções que dava ao grupo. 
O jogo da conversa não era o que se dizia, o jogo era a dança relacional que provocava no grupo, fosse este de conhecidos ou de desconhecidos.

Uhau!!!...
apesar de não ouvir as palavras [estava de um lado do vidro e eles do outro lado, na esplanada] mergulhei na conversa "apanhado", não pelo tema, mas pela teia relacional.

Por duas vezes, quando já estava"farto" de ver [e não de ouvir] uma pessoa a falar, ela calava-se e outra pegava na deixa. Depois percebi que a teia relacional lhe tinha dado sinais para isso, porque um bebeu água e olhou para fora, outra falou para o lado, uma terceira mudou de inclinação na cadeira e... a "palestrante" percebeu que o seu tempo tinha chegado ao fim.

Esta autonomia cheia de sabedoria grupal deixou-me espantado. Nunca tinha percebido com tanta nitidez que uma conversa é basicamente um "encaixe grupal", uma "dança relacional" a suportar uma circulação de palavras e não o contrário.

Em esquema Maslow-viano há duas alternativas, o modelo clássico coloca o cognitivo a suportar o social e o modelo neoclássico coloca o social a suportar o cognitivo:

Clássico                                          &                                    neoclássico
Não considerando as técnicas de representação teatral no "falar em público", no modelo clássico o mais vulgar é utilizar uma leitura de boa entoação e expressão esquecendo a audiência, tipo plateia escurecida do teatro.
É o estilo de alguns conferencistas que se limitam a ler ou papaguear o que decoraram, mas se esse formato fosse usado num grupo de amigos... em poucos minutos estariam a falar sozinhos.

No outro extremo, no neoclássico, aparecem conferencistas ao estilo circense com contínuas propostas relacionais intervaladas com conteúdos de "banalidades de base", fait divers, ditados e afirmações de senso comum tipo La Palisse. Sem um "vinhito" à mistura, nenhum grupo de amigos sobrevive muito tempo, é o chamado estilo "porreiraço".

"Fugindo" a estes dois estilos há várias propostas possíveis, como por exemplo, a nível do "conteúdo" uma solução é procurar o seu domínio, não pela memorização de textos mas, pela memorização de pontos-chave e estrutura. Nesta perspectiva o uso de "mapas mentais" é um bom suporte.

No outro nível de gerir a "dança relacional", uma solução para treino inícial é ter uma ou duas pessoas na assistência e falar para elas, mantendo assim uma "dança relacional privada" que se torna pública e dá segurança.
Um truque muito usado por políticos é fixar dois (ou mais) desconhecidos, à priori um identificado "contra" e outro "a favor" do conteúdo do discurso e, atento às suas reacções, procurar controlar-gerir a dança relacional que está criando, aproveitando os "altos e baixos" das suas reacções. 

Como conclusão,

[...falar em público é como contar a um grupo de amigos 
uma história sobre o tema em que está falando...]

e isto todos nós sabemos fazer sem medo e com alegria.