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sábado, 28 de dezembro de 2019

A confusão Democrática: inimigos ou adversários


Li no massmédia e fiquei confuso por duas razões:

1ª - Qual a diferença entre adversário e inimigo???
2ª - Na Democracia há adversários???

Com a primeira pergunta andei divertido, mas com a segunda fiquei angustiado e com ambas senti-me rodeado por Conspiração de Teorias, FakeNews e FakeTruths(1).

(1) Afirmações fúteis e confusas aceites e usadas como óbvias e verdadeiras.

1ª - Qual a diferença entre adversário e inimigo???

Pesquisei em dicionários e os resultados foram:
inimigo - não amigo (???), tem ódio a alguém, pessoa hostil, contrária, adversa, prejudica, é nociva.
adversário - opõe-se, luta contra, antagonista, rival, contendor.

A base é a mesma, ambos são um confronto-para-impacto com nuances na intensidade, qualidade e quantidade das suas variáveis. Porém certas análises especificam uma característica que só aparece nos inimigos: ódio ao outro.

Por um lado, esta variável clarifica a diferença entre ambos mas, por outro lado, embaralha mais. Por ex., numa Democracia, na Assembleia Democrática como distinguir o inimigo politico do adversário politico?

Teoricamente é fácil, um tem ódio pessoal e o outro não. Mas na prática, cada deputado é psicanalista/psicólogo em diagnóstico dos colegas: ...tem ou não tem ódio? ...é sempre ou só às vezes? ...é só a mim ou a todos? ...é tratável? ...é perigoso? etc. Não vai ser fácil.

Todavia, esta diferença ainda é mais confusa. Na guerra, quando se mata um soldado inimigo mata-se um desconhecido portanto não pode haver ódio instalado, logo mata-se um soldado adversário... e não um inimigo.
A confusão aumenta, pois afinal no geral combatem-se inimigos e no particular matam-se adversários! Anda-se a brincar com manipulações do senso comum? Parece que sim! Como exemplo histórico:

Na 1ª Crande Guerra, em 24 Dezembro 1914, nas trincheiras ao sul da cidade de Ypres, Bélgica, soldados alemães e ingleses por decisão própria pararam a guerra e festejaram o NATAL em conjunto:


A compreensão de que não eram soldados inimigos mas apenas soldados adversários foi comum nos dois exércitos ditos inimigos.

Este acontecimento, hoje conhecido pela Trégua de Natal de 1914, teve em 1999 a comemoração dos seus 85 anos com a colocação de um Memorial no local onde essa decisão foi feita à revelia do poder militar instituído:
(Ypres, Bélgica)
Porém, quando fanatismos se instalam, sejam profissionais, clubistas, políticos, partidários, religiosos, nacionalistas, etc, eles ficam dominados pela ideia odiada e todos os diferentes são apenas "coisas" para descarregar ódios, portanto inimigos. 

FakeNew tem gémeos, as FakeTruth, isto é, "verdades" fúteis e confusas consideradas verdadeiras e óbvias e que se aceitam e usam automaticamente.
Como teasers (provocativos, capciosos) três questões:

- Se há adversários políticos e inimigos políticos, como se distinguem? 
- Se há inimigos pessoais o que são inimigos não pessoais? 
- Se um confronto de boxe tem adversários, um confronto de xadrez tem inimigos e vice versa? 

2ª - Na Democracia há adversários???
A Democracia é como navegar pelas estrelas,
elas são orientação mas a essência é o caminhar.

Segundo a Teoria dos Jogos, num jogo a sua essência é o prazer das jogadas feitas após as jogadas do outro,
...ambos contentes... ganhar ou perder é "pra esquecer"
o resultado é apenas uma referência para estruturar jogadas... é uma consequência colateral... portanto,  não são adversários mas sim cúmplices em encaixar jogadas, daí a alegria de se encontrar e estar juntos.

Quando na Faculdade de Ciências passava as tardes a jogar xadrez na Associação de Estudantes, era num grupo de "viciados" e quando alguém chegava para espectador o "Olá" nunca era "quem ganha?" mas sim "isso está bom?".

Qualquer pedagogo sabe isto mas, muitas vezes, os treinadores e claques ignoram e instalam o método adversário e as consequências são opostas pois em vez de abraços há pancadaria, [...o objectivo é a derrota do outro, jogadas são necessidades colaterais].

Na verdade, desde o xadrez, bridge... ou boxe, futebol... ou pingpong, bilhar... todos os jogos são iguais em três condições:

- os jogadores querem fazer jogadas;
- aceitam as regras de jogo;
- respondem às jogadas dos outros.

ou seja, isto significa que sem os outros não há jogo pois NÃO HÁ JOGADAS PARA RESPONDER.

Portanto, a essência de qualquer jogo é a cumplicidade entre todos, todavia na relação de adversário a essência é "não preciso dele" logo destruí-lo (pancada, ferida, etc) é uma opção. Na opção adversários a desistência do outro ou fraude "legal" é vitória, na opção cumplicidade é frustação.

Uhhau... 
Uhhau...
...então a essência do jogo é existir uma interacção de CÚMPLICES a receber e devolver jogadas, permitindo a ambos diferentes caminhos e diferentes alvos para o mesmo objectivo.

Ganhar ou perder é um acidente de percurso, um "termómetro", e como feeddback nem sempre é válido, pois pode suceder que "ganhei mas o jogo foi uma porcaria e não gostei" ou  "perdi mas o jogo foi óptimo e gostei".

É vulgar existirem adeptos com estas duas avaliações, inclusive no futebol. Às vezes até todo o estádio aplaude com confrontos bem jogados, "esquecendo" se houve ou não golo. Foi um instante solene em que adversários foram cúmplices a viver a magia do jogo de futebol... esquecendo o "vício" do golo e o fanatismo da vitória.

Por experiência pessoal, não sendo um "fan" de futebol, em determinada época fiz parte de um grupo que aos sábados de manhã se juntava nos campos do Estádio Nacional (ISEF) para jogar futebol de 5.

Tudo era informal, as equipas eram "à balda" com voluntários (às vezes femininos) e jogava-se enquanto se queria, saía-se, conversava-se  e depois voltava-se a entrar mesmo para a equipa oposta.  Tudo continuava com trocas sucessivas enquanto houvesse quem quisesse jogar.
Nos sábados de manhã, estávamos "viciados" nessa festa convívio de cúmplices futebolistas.

Os golos marcavam-se mas ninguém ligava, as equipas eram voláteis, o importante eram as jogadas "bem tiradas" por bem ou mal feitas, mas implicadas e divertidas, observadas e aplaudidas. O jogo era levado a sério, não havia desistências, batotas ou fraudes.

Este "futebol" começou a ter fama e os espectadores e os voluntários aumentaram. Sem se notar, "o vicio dos golos" instalou-se.
Equipas passaram a ser fixas com 10 elementos seleccionados entre os melhores, o jogo "adquiriu" árbitros e fiscais e os resultados eram solenemente registados de um sábado para outro. "Nasceram" "quotas" pagas para medalhas, taças e almoços de festejo.

Os adversários  futebolistas nasceram e as claques também. A palavra de ordem "quem joga mal, assiste e apoia" era a regra, mas apesar de feita nunca era dita.

Discretamente, o absentismo também nasceu. Sem reuniões, sem debates, sem votações, mas com desculpas várias, o grupo inicial desfez-se. Não sei o que aconteceu ao grupo emergente de adversários futebolistas mas penso que tiveram vida curta.

Como curiosidade, num encontro da Pedagogia Experiencial na República Checa, por proposta de um prof. escocês (Dr. Roger Greenaway) jogou-se um jogo futebol de 11 sem bola, foi muito implicado e motivado com "golos" válidos e "golos" discutidos, houve cartões amarelos e tudo, mesmo sem árbitro.

Como Psicodrama num grupo de 22 sem qualquer "linha de acção", a cumplicidade grupal foi inesperada não só nos jogadores como na participação e interesse de dezenas de espectadores.


O "jogo" só foi possível com uma intensa e alegre cumplicidade entre todos.

Na Democracia acontece o mesmo, é necessário cumplicidade, mas a Democracia é como navegar pelas votos, a validade depende do caminhar não dos votos. Uma eleição controlada com repressão e com diálogo prévio suprimido, tem votação e tem eleitos mas não tem Democracia.

Na verdade, a Democracia é uma espécie de futebol-sem-bola que em vez de golos usa votos. Na Democracia em formato adversário (Parlamentar) a cumplicidade dos jogadores é destruída com FakeTruths tornadas óbvias, indiscutíveis e muito usadas nas redes sociais para argumentação de opiniões. As mais comuns são  foi votado,  foi eleito, liberdade de expressão, aplicadas como se fossem dogmas religiosos que tudo justificam.

... foi votado...mas...
...a votação é uma verdade humana,
não é uma verdade divina!

Uma votação democrática pode ter 100% de acordo na opinião grupal mas isso não dá garantia de validade técnica, "Se todos votarem que os galos põem ovos é uma decisão democrática mas não tem validade técnica...".
Nas ditaduras conclui-se mas não se discute. 
Nas democrácias discute-se mas não se conclui. 
Nas Democracias dialoga-se e conclui-se.

Segundo os clássicos gregos a base da Democracia é o dia-logos ou seja "...o livre fluir de significados através do grupo"(*) alcançando  assim o que é inalcansável individualmente. Isto  significa  que a essência da Democracia está no diálogo prévio à votação e não nos votos obtidos. Nas palavras de um filósofo grego da época, "[...quando a votação começa, a Democracia termina].

* - Peter M. Senge [The fifth discipline] pg 10

No sec XIX foi criado para a Democracia o "Westminster system". Aplicado nas colónias do British Empire (Canadá 1848, Austrália 1855 e 1890) formatou um modelo que depois foi divulgado e adoptado por vários países, por vezes com variantes.

Uma das bases do "Westminster system" é a técnica da oposição versus governo. Uma espécie de vírus inserido no ADN da Democracia e provocador da doença "adversário".

Este vírus é uma FakeTruth lógica que se baseia-se na correlação fictícia de que quem sabe destruir (um prédio,..?) também sabe construir (um prédio,..?). Ou seja, um bom líder de luta (ataque) é também um bom líder de colaboração (diálogo), o que é uma conclusão discutível.

O "Westminster system" com seu sistema adversário usa esta duvidosa correlação para justificar a alternância  oposição governo pois considera que quem é bom a criticar e mostrar erros é bom a criar  e mostrar soluções, todavia são destrezas diferentes.

Esta FakeTruth tem uma versão caricata que é "quem apresenta uma critica ou um problema deve também apresentar a solução"*. É uma afirmação interessante porque todos nós vamos ao médico para apresentar problemas e ninguém leva solução.

*- Esta foi uma das criticas feitas à Greta Thunberg mas dizendo que compreendem porque ela ainda é adolescente.

No sistema adversário, a oposição procura ERROS, desequilíbrios e fissuras e o governo procura ÊXITOS, equilíbrios e colaborações e tudo se agrava porque:

- mostrar um erro não significa tudo errado e mostrar um êxito não significa tudo certo;
- mostrar o erro não faz a solução e mostrar a solução não tira o erro.

Problemas complexos não se podem solucionar com lógicas avulsas, têm que ter lógicas por medida e neste caso há duas lógicas a integrar. 
Numa, o líder da oposição tem a função de opor-se, portanto, é perito em lutas de ataque-defesa e descoberta de erros. 
Na outra, o líder do governo tem a função de agregar pessoas, meios e acções, portanto, é perito em colaboração e construção de projectos.

Os dois critérios de liderança são diferentes e talvez até antagónicos.

O "Westminster system" com o seu sistema adversário para alternância governo-oposição traz bugs às duas lógicas, pois o líder da oposição é um fighter e o lider do governo é um designer*, portanto, com destrezas, competência e funções diferentes.
Talvez nas Assembleias Democráticas a discussão de adversários tenha que passar a diálogo de cúmplices**.

* - Peter M. Senge [The fifth discipline] pg 318
** - Perante o filho doente, pai e mãe não são adversários em discussão, são cúmplices em diálogo.

Como conclusão, peneirar erros talvez ajude mas não resolve, não chega, pois o objectivo de diálogo em Democracia não é peneirar erros, ser ANTI, mas sim criar soluções, ser PRÓ. Quando isso acontece, o termómetro votação indicará se há (ou não) saúde democrática.

Se não houver saúde democrática, surgem "doenças" (absentismo, populismo, fanatismo, insegurança, etc). Um sintoma avisador, bom para uma pré-selecção, é a relação (desequilibrada ou equilibrada) entre propostas "anti", tipo chega disto, chega daquilo, chega daqueloutro, e propostas "pro" do tipo começa isto, começa aquilo, começa aqueloutro.

... foi eleito...mas...

Por ter sido democraticamente eleito não é por esse facto que adquiriu imunidade ao erro, ficando com a sabedoria "divina" instalada ou, de um modo simples, foi democraticamente eleito, pode decidir mas pode estar errado.

O argumento "foi eleito, decidiu, em democracia tem que se aceitar" é uma FakeTruth.

A própria Democracia contem seguranças contra esta FakeTruth e existem variantes consoante os países e a situação [impeachment, moção censura, cassação, recall, etc].

Ser eleito significa legalidade democrática para tomar decisões mas isso não implica legalidade democrática para todo e qualquer conteúdo dessa decisão. Por exemplo,

"...fui democraticamente eleito, portanto, 
decido que sou vitalício e acabaram-se as eleições..."

não é uma decisão democrática.

A democracia contém alternativas de processos politico/criminais de perda de confiança, desacreditamento, obrigação de renúncia, etc, devido a decisões tomadas que, no mínimo, pode pôr fim ao mandato.
Trump (USA) foi democraticamente eleito mas, quer validado ou invalidado, o processo impeachment já foi detonado por decisões efectuadas:

... liberdade de expressão...mas...
...a liberdade de cada um acaba
onde começa o nariz do outro!

Entender a liberdade de expressão como um princípio absoluto é uma FakeTruth. Não pode ser retirado mas também a sua aplicação não pode ser às cegas.

Na verdade, liberdade de expressão é um faca de dois gumes, pois contem duas liberdades e várias varáveis. Por um lado significa a liberdade de emitir unida à liberdade de receber. Estas duas liberdades (da expressão e da recusa expressiva) não podem colidir, isto é, uma não pode sobrepor-se à outra.

Tem liberdade de expressão mas o outro
tem liberdade de recusa expressiva 

Liberdade de expressão, como principio inalienável, é inseparável de seus elementos constituintes: receptor, conteúdo, forma, situação. etc. Exemplos:

Réu: Como liberdade de expressão do meu amor, dei-lhe uma flor!!!
Queixosa: Atirou-me um cacto e vinha com vaso!!

Queixoso: Ela deu-me um estalo!
Ré: Foi liberdade de expressão do meu amor!

Queixosa: Ele estava todo nú!
Réu: Foi liberdade de expressão... estava numa praia de nudistas!

Réu: Estar nú é minha liberdade de expressão corporal!
Queixosa: Ele estava num cinema em Lisboa!

Réu: Usei a liberdade de expressão do meu amor: palavras, beijos, festas, sexo
Queixosa: A minha liberdade foi recusar todas.

A linguagem, como centro de expressão está intimamente conectada com a cultura instalada, não só nas palavras usadas como nas formas não-verbais desde o tom de voz, intensidade, gestos, etc, até à própria situação.

A cultura instalada pode recusar certa linguagem e o estranho não tem o direito de impor a sua "liberdade de expressão" e mutilar a liberdade de recusa expressiva do outro.
O representante de uma cultura instalada pode recusar certas palavras por estarem fora dos limites culturais aceites nessa cultura.

Neste caso, esse impedimento não é limitar a liberdade de expressão, antes pelo contrário é facilitar a liberdade de expressão.
Um novato numa cultura só pode agradecer essas limitações pois dão-lhe a conhecer a "gíria" para obter eficácia na sua liberdade de expressão pois "tudo pode ser dito só depende das palavras".  Não o aceitar ou é falta de discernimento ou de flexibilidade ou apenas "to be rude" (grosseiro).
Exemplo, o uso das palavras "Colored", "Negro", "Black"  e "African American" nos USA.

Mas liberdade de expressão é mais vasta do que apenas a comunicação verbal, abrange toda a comunicação expressiva desde comportamento e gestos a vestuários e rituais.

Uma experiência pessoal.
No Japão se escolher um hotel Ocidental, expressa-se usando sapatos, porém se escolher um Ryocan (hospedaria tradicional japonesa) isso não é possível. Logo na entrada é preciso descalçar ou desistir e mudar-se para um hotel ocidental.

Estando em Kioto hospedado num Ryocan, um dia à noite, cheguei completamente encharcado, descalcei-me à entrada e com sapatos na mão quis subir para o quarto para os secar no aquecedor.

Não consegui porque não me deixaram. Não falando japonês e a senhora japonesa não falando inglês, foi um debate gestual interessante entre representar que "não ia calçado era só secar" e a contra-representação de "desculpe mas sapatos não entram".

Entendemo-nos, os sapatos ficaram lá e fui para o quarto. No dia seguinte ao sair, eles estavam no local costumado, secos e limpos acompanhados por umas capas de plásticos que se vestiam por cima quando chovia.

Não tínhamos sido adversários apenas cúmplices integrando as diferentes culturas.

Término

Nasci e vivi no tempo da ditadura, num país de inimigos políticos e adversários políticos.
Vivi épocas de sua "saúde(?!?)", doença terminal, morte e posterior sobrevivência de adversários políticos.
Assisti ao nascimento e instalação da Democracia Parlamentar com sua alternativa cíclica de vitoriosos, chamados governo, e derrotados, chamados oposição

As eleições decorriam entre coktails de propostas Anti e propostas Pró's e a estratégia era básica, clássica e fruta-da-época: "...a motivação cria-se tendo um inimigo".

Tempo passou, os adversários continuam a adversar-se (latim: adversāri, opor-se) e os espectadores a espectar (ver sem participar)... os primeiros (e seus adeptos) lutam e os segundos ficam absentistas.

Gostava de morrer deixando aos meus netos um país, não de adversários políticos, mas de cúmplices políticos.
Será possível re-pensar o "Westminster system" do século XIX agora com a mutação social das redes sociais do séc XXI???

Não sei, mas é tempo de acabar com adversários políticos divididos entre vitoriosos e derrotados, e nascerem aliados políticos a integrar diferenças e co-responsáveis no futuro em aproximação.
Talvez os absenteístas desapareçam... tenho esperança nas novas gerações.