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sábado, 14 de março de 2020

A vida é caminhar aos SSSSSSSS - 1ª Parte

A vida nunca é caminhar em linha recta mas para uns "aproxima-se", planeiam aos 5 anos (eles ou família) e aos 50 anos confirmam o êxito do plano.  Para outros tudo acontece aos SSSS (contravoltas), planeiam uma coisa e sucede outra ao "contrário"... foi o meu caso. 
Na verdade a vida não nos traz problemas traz-nos situações diferentes e os problema vêm das escolhas que nelas fazemos. Quer o SIM, NÃO ou NIM podem trazer problemas... não temos solução.

Mas penso que a meu respeito o Plano dos Deuses teve SSSSSS (contravoltas) a mais. Dois exemplos, começar e depois deixar de ser militar.

1ª Parte - Ser Militar

Pois é verdade, como oficial dos Quadros Permanentes a minha carreira militar começou como “desertor”. 

Bom aluno no Liceu (Quadro de Honra), aos 16 anos tudo mudou com a ida para a Faculdade de Ciências. Numa escala de 0 a 20 as minhas frequências eram 4 e 5 valores. A manhã resumia-se a, muito concentrado, jogar xadrez na Associação Estudantes, as tardes a ler livros (seleccionados e reservados) na antiga Biblioteca Pública no Largo das Belas Artes no Chiado perto do clube ginástico G.C.P. onde passava o resto das tarde e noites (até 23:00h) a treinar ginástica aplicada:


Esta vida calma e rotinada tinha uma “ameaça”. Nos anos 50, para os homens aos 21 anos a “tropa” era obrigatória, ou seja, dentro de 4 anos o meu planinho seria destruído.

Um dia, na Associação Estudantes apareceu um panfleto do Ministério do Exército propondo uma nova solução que estava a começar, o CEPM (Curso Especial de Preparação Militar). 
Isto significava que estudantes universitários poderiam fazer a "tropa" aos bochechos em fins de semana sendo alunos universitários nos outros dias. Como vantagem, far-se-ia assim o C.O.M. (Curso de Oficiais Milicianos), ser-se-ia promovido para fazer o resto do tempo obrigatório num quartel em Lisboa.
Uuuhauu… era a minha solução, safar-me-ia da "tropa" dos 21 anos sem alteração de vida. Acreditei, replaneei e inscrevi-me como voluntário e ingressei no CEPM em Caçadores 5 (Lisboa). 

Tudo correu bem. Dois meses depois estava farto.
Parecia outra vez a Mocidade Portuguesa onde "vestido de verde" passava a vida em marchas e marchinhas, porém, na época, com 12 anos, descobri que a Vela da Mocidade Portuguesa na praia de Algés permitia fugir e, a Vela fosse o que fosse, seria melhor.
Inscrevi-me e funcionou... adeus militarices.

Assim, por "experiência" acumulada, comecei à procura de soluções. Alguns instrutores "fans" de ginástica conheciam-me e comecei a ajudar e exemplificar exercícios para se criar um grupo de exibição para o juramento de bandeira.
Consegui algum crédito e obtive algumas dispensas (documento justificativo de falta) para um ou outro treino de fim de semana no GCP.

Um dia, devido a uma época de saraus e campeonatos consegui algumas dispensas seguidas para poder treinar e participar… estava livre daquilo.
O problema foi que me "esqueci" do CEPM e nunca mais lá fui.

Três meses depois, aprumadinho e fardadinho de soldado-cadete, reapareci em Caçadores 5 para continuar o CEPM… e surpresa minha... fiquei preso, estava na lista de desertores.

Começou um "diálogo" civil-militar na interpretação de um "equívoco semântico" do problema.
Havia duas perspectivas. Numa, a militar, eu tinha dado 3 meses (90) de faltas à instrução militar, na outra (a minha) eram só 12 (3x4) faltas pois no resto da semana eu era civil e estava na Faculdade.

Estávamos em 1955 e a "fronteira quartel-universidade" era um protocolo de "máscara democrática" do tipo "és acusado (culpado) mas podes defender-te". 

Detido, na 2ª feira e por escrito, solicitei ir às aulas alegando que, de acordo com o documento assinado, só era militar aos fins de semana e agora já era 2ª feira.
Não tive resposta mas "constou-me" que o meu pedido tinha piorado o clima e um PM aconselhou-me a estar quieto.

Mais tarde fui chamado e apresentaram-me duas soluções. Numa era considerado desertor e o normal seria ficar preso no forte de Elvas, a outra era ser considerado faltoso e seria detido na unidade por dois a três meses.
Ainda com restos do protocolo "és acusado (culpado) mas podes defender-te", deram-me algum tempo para pensar, mas a escolha feita teria que ser assinada.

Quando fui outra vez re-chamado, respondi que não me parecia possível ser desertor pois isso acontecia quando aos 21 anos não se cumpria a lei de incorporação e eu só tinha 17 anos e portanto não podia ter abrangido por essa lei.

Pelo outro lado, eu tinha-me matriculado (hoje penso que a palavra foi errada) num curso militar só aos fins de semana portanto no resto da semana era civil. Assim eu tinha 12 faltas "justificadas" com antecedência pelo documento que possuía, um impresso adaptado doutras situações apenas com um vago "durante treinos para campeonato", datado, assinado e carimbado.

O silêncio ficou pesado e longo... e entre os que tinham autorizado e dado a dispensa e os que decidiriam o que fazer... as hierarquias pensavam.

Incomodado e sem perceber bem onde estava metido resolvi ajudar expliquei umas "contitas" que tinha feito.
Sendo militar aos fins de semana seria preso aos fins de semana, logo 2 meses de detenção seriam 60 fins de semana e o ano só tem 45 semanas, portanto, a solução podia ser "chumbar" neste CEPM e, obrigatoriamente, recomeçar no próximo ano.

Tudo piorou bastante e com um grito ordenaram à Policia Militar (PM) para me levar. Fiquei à espera “em-banho-de-maria” sob o controlo espantado dos PM a olharem para um "universitário burro".

Fui re-re-chamado e a solução era simples e, militarmente, óbvia. Eu era um soldado-cadete incorporado numa situação de C.O.M. parcealizado. Considerando as faltas e o insucesso resultante, seria transferido para o normal C.O.M. de Artilharia na Escola Prática de Vendas Novas.

Com uma Guia de Marcha na mão, um bilhete de comboio e um aviso-de-amigo, "se não me apresentasse iria parar à prisão de Elvas", aos 17 anos dei entrada na Escola Prática de Artilharia em Vendas Novas, Alentejo:


Acomodado numa caserna com vários "soldados-cadetes" dos 22 a 32 anos... disse adeus a Lisboa, xadrez, livros e ginástica. Não era mau era só "diferente", mas estava farto.

Alguns co-recrutas mais velhos tinham nas redondezas uma carrinha Volkswagen em standby para escapadelas clandestinas para a “vida nocturna” de Évora que, nos anos 50 e depois da uma da manhã , era só para "connaisseurs", pois turistas nicles, népia.

Tenho poucas lembranças dessas escapadelas que às vezs aceitava, excepto imagens de casas "perdidas" no campo em sítios escuros, decoradas com mantas penduradas a criar "gabinetes" para "conversar" e claro tabaco e alcool.
Não fumando e não bebendo restavam-me as "conversas intelectuais"... realmente não era um hobby "brilhante" para des-stressar. Só a excitação da saída e entrada e a calma das viagens me animavam um pouco.

Um dia recebi a notícia que a Escola Naval ia abrir concurso para admissão de cadetes, sendo obrigatório a nota final do Liceu (que a minha era alta), ter o máximo de 18 anos e fazer provas físicas.
Concorri e fui admitido. 

Uuuhauu… estava livre daquilo... porém os Deuses deram-me outra SSSS (contravolta)...

Durante o período de provas físicas na Escola Naval, ainda estava alojado em Vendas Novas e cumprindo o C.O.M. pois só tinha dispensa para os dias de provas. Um dia em conversa com um oficial instrutor fui informado que não havia possibilidade legal para a minha transferência do Exército para a Marinha, pois só era possível do Exército para a Força Aérea e, talvez... se aviador, desta para a Aviação Naval na Marinha... portanto, mesmo que passasse não seria transferido.

Portanto tive que re-planear e concorrer não para Marinha mas para Aviação Naval. Foi possível e fiz inspecções médicas no Hospital Militar da Estrela e fiquei apto para aviador. Fui transferido de Exército (Artilharia) para a Força Aérea (quartel do Monsanto) onde estive algum tempo há espera da transferência para a Aviação Naval (Marinha) como cadete e futuro aviador naval.

Outra SSSS (contravolta) dos deuses... e mais tarde a Aviação Naval foi extinta e passei para Marinha como oficial dos Quadros Permanentes (na época para a vida inteira), tudo porque planeei fugir "à tropa" com uma escapada temporária... humor irónico dos deuses (e claro deusas)!!!.

Conclusão

Por causa de uma ligeira distração (algumas faltas) passei de um militar de CEPM temporário para um militar dos Quadros Permanentes para a vida inteira.

A vida é sempre feita de pequenos solavancos desprezáveis e com efeitos deterministas. Aprendi e como hobby ando a pesquisar recuerdos à procura destes solavancos com consequências de 180º no caminho da vida... e já descobri meia dúzia*.

* - O que me deixa intrigado... quem seria eu, hoje, se eles não tivessem existido?

Por exemplo,
nos anos 50 e 60, nos três ramos das Forças Armadas (Exército, Marinha, Força Aérea) para os Oficiais dos Quadros Permanentes os pedidos de demissão estavam completamente proibidos e bloqueados.

Devido a outras SSSSS (contravoltas) nos meus 12 anos de oficial militar, muitos em África, e devido a uma certa SSSSS (contravolta), um simples "quid pro quod militar", fui preso e investigado.
No longo "debate", no qual estive apoiado por dois advogados civis pro bono, a situação era "confusa" pois "parecia" que na forma usada era militarmente culpado mas no conteúdo era militarmente correcto.

A solução não era fácil pois a situação era militarmente incómoda para o futuro, pois um oficial que, por escrito, participa do comando passa a futura "persona non grata" como subordinado, principalmente se "o fumo tinha fogo".
Algumas alternativas foram faladas (nunca propostas) mas, por mim, não aceites.

Em Mar.1968 numa reunião privada de duas horas com o Ministro da Marinha, Almirante Pereira Crespo, após uma interessante troca de ideias, entreguei o meu Pedido de Demissão que foi aceite e prometido que seria aprovado no prazo de dois anos, mediante certas condições que aceitei e cumpri.

Realmente, ano e meio depois, em fins de Dez 1969, de surpresa, o meu pedido de Demissão foi aceite. Em Jan.1970 comecei o Novo Ano como civil... outra vez... mas agora casado, com filhos, sem dinheiro e desempregado!

Dois meses depois, em Março de 1970, sou convidado para ingressar no Ministério da Educação Nacional (Ministro Veiga Simão), tomando posse como técnico superior*. Fiquei responsável a nível nacional por projectos de dinamização do sector escolar Primário e Secundário na área Educação Física com financiamento do FFD (Fundo Fomento Desporto).
Gostei do trabalho, correu bem, sendo algumas vezes entrevistado por jornais e TV:

*- PS - Em 1972, com a "moribunda" "Primavera de Marcelo Caetano", os projectos definharam e fiquei limitado a gestões burocráticas... farto de papelada, pedi a demissão da carreira de funcionário público do MEN (Ministério de Educação Nacional).
Com pouco dinheiro, neste período, divorciado, vivi acampado numa tenda durante ano e meio no parque de campismo do Monsanto, onde no verão os meus filhos iam ficar comigo nos fins de semana... divertiam-se.