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quarta-feira, 14 de agosto de 2019

"Obedecer?"... humanos, animais e calhaus.

Ninguém se espanta que humanos domestiquem animais.

Este hábito de domesticar  (fazer obedecer) tem milhares de anos e grande variedade mas evoluiu pouco, resume-se a "- Eu digo e tu fazes!"
Em consequência é vulgar que humanos também domestiquem humanos pois afinal é tudo animal quer seja animal humano ou só animal.
Simplesmente, nos animais humanos a domesticação tem outro nome chama-se educação ou instrução,


com diversas finalidades, desde autoridade e disciplina até destreza laboral, comportamento social, missionação cultural, etc, e ás vezes até produzir mão-de-obra domesticada (escravatura) mas, na sua essência, a técnica é simples e constante, é só aplicar a dupla "Eu mando... tu obedeces".

O eixo da confusão está em que educar e domesticar não é o mesmo. O dilema é que, na prática, sente-se diferença mas por "escassez cultural" não se percebe o quê, nem no método nem no resultado.
Não se distingue se o processo é educar ou domesticar e se o resultado é destrutivo ou construtivo. Apenas se considera domesticar se é aplicado a animais ou educar se aplicado a pessoas.

Como ex., muitos pais educam filhos com técnicas de obediência autoritária de estilo militarizado, ficando inconscientes das sementes de domesticação que estão a semear.

Parafraseando o ditado, poder-se-á dizer "o que semeares como educador, assim serão os teus educados" mas o cerne da questão não são os conteúdos veiculados mas sim as formas utilizadas.
Não é uma questão de "O QUÊ" (What) mas de "COMO" (How). Em educação a forma canibaliza o conteúdo.
Quando dois irmãos se agridem e os pais ao estalo conseguem que isso acabe,  o que ensinam não é o conteúdo "não agressão" mas sim a forma "sim agressão" pois nitidamente mostraram que o estalo resolveu o problema. Assim os futuros adultos serão portadores do padrão ensinado "violência" como solução a utilizar na família (violência doméstica) e sociedade (violência social).

Há relatos de casos extremos de filhos cujos pais com profissões autoritárias aplicam em casa as submissões feitas/sofridas no trabalho. Nos relatos é clara a inconsciência desses pais com os efeitos produzidos nas crianças, adolescentes e adultos.
(ver Frantz Fanon, psiquiatra).

O educar desliza naturalmente para domesticar... por ignorância, por indiferença (smugshrug), pois é simples, fácil e aparentemente dá resultado. Problemas?... depois se vê, entretanto aplica-se a filhos, alunos, cônjuge, amigos e até a simples conhecidos.
Muitas vezes na TV, em simples conversas democráticas, o método utilizado é "...ora agora domestico eu... ora agora domesticas tu...".

Para existir domesticação e/ou educação, a essência de ambos é exactamente a mesma quer seja em animais quer em humanos.

A essência do domesticar

Por ex, cavalos selvagens não puxam carroças mas cavalos domesticados fazem-no. Para o fazer têm que adquirir decisões novas tais como estar preso à carroça e puxá-la se é estimulado por rédeas, chicote ou berros.
O interessante é que anteriormente essas decisões não existiam, mas agora existem e coexistem com outras. Mas o processo é mais complexo.

Na verdade, para ser bem domesticado não basta ter aprendido novas decisões. Elas não podem coexistir com outras, assim, essas outras têm que ser destruídas e ele tem que ser "impotente" para tomar decisões. Por segurança e garantia ele tem que ser tornado impotente para decidir, um abúlico ou eterno indeciso.

Numa palavra, tem que ser um obediente puro, i.é., só cumpre e como vida interior tem nicles. Não pode ter autonomia, a sua obediência tem que ser total, por ex, o cavalo domesticado não pode de repente decidir correr atrás da manada com a carroça atrás.

Em resumo, domesticar exige:
1 - inserir decisões novas;
2 - destruir decisões antigas;
3 - criar impotência decisória;
4 - inserir estímulos detonadores(1) das novas decisões.
(1) - reflexos enxertados, vide Pavlov e outros.

Domesticar exige que o domesticado possa APRENDER para adquirir informação nova e possa DES-APRENDER informação indesejável. A vida interior (seja lá o que isso for) só deve ter o mínimo necessário para as aprendizagens e desaprendizagens necessárias.
Tecnicamente, o cavalo passou de selvagem com vida interior a domesticado com a saudade na alma:


Com os humanos acontece o mesmo.
A Maria na aldeia saudava os amigos com um aceno de mão mas no quartel adquiriu outro estilo, agora aponta com a mão prá cabeça e chama-lhe continência.
Em resumo:
1 - inseriu decisões novas;
2 - destruiu (faz continência aos amigos)
     ou mantém  também decisões antigas;
3 - criou impotência decisória
     ou mantém áreas de decisões extra;
4 - inseriu estímulos detonadores das novas decisões ou
     confunde detonadores ( faz continência ao porteiro do hotel, fardado e com galões).

A questão é simples, até que ponto a recruta sofrida "destrói a vida interior e robotiza"?

PS - Há vários filmes sobre recrutas militares e a intensidade desta "destruição" apresentando prós e contras e dramas resultantes.

É óbvio que a intensidade destes processos varia em função das características da dupla "participantes-situação" e, apesar disso ser comum aos animais e aos humanos, as potencialidades são diferentes.  Domesticar um humano para puxar carroças é mais fácil do que pôr um cavalo a cantar:


No dia-a-dia todos sabem educar crianças, isto é, alterar os seus comportamentos, mas só alguns o fazem com leões, tigres e até gatos. Não é um problema de dificuldade, é um problema de perigosidade na introjecção de decisões estranhas (domesticação).

Se a criança tirar a banana ao adulto é instintivo este zangar-se, mas se um gorila lha rouba o instinto do adulto altera-se, com um sorriso oferece-lhe o cacho inteiro. O instintivo é um fenómeno complexo e com muitas caras.

De qualquer modo, 'in brevis', domesticar animais e humanos é sempre um processo de ensino-versus-aprendizagem, ou seja, é incorporar algo novo na vida interior do domesticado (mente, consciência, neurónios, etc, seja lá o que for). Domesticável sem vida interior não é domesticável:
domesticar humanos
domesticar animais
calhau não domesticável
Na verdade, todos sabemos que não se domestica calhaus porque sem vida interior não é possível domesticar pois não aprende.
Assim, todos sabemos que animais são domesticáveis, logo aprendem, logo evoluem, logo têm "mundo interior", mas...


admiramos, esquecemos, recusamos, recalcamos e concluímos "são bichos, são coisas andantes...".

Nas touradas, os humanos divertem-se como o sofrimento do touro (é um espectáculo agradável) mas choram se o gato ou cão lá de casa é atropelado e correm para o veterinário (é um drama doloroso).
O animal humano é um amontoado inconsciente e feliz de contradições (ver David Hume, sec XVIII).

Mandar-obedecer e domesticação

Esta dupla resume-se à cirurgia mental de substituir decisões no comandado. Seja o que for que ele possua na sua "vida interiorela tem que existir activa pois morto ou em coma não serve, decisões têm que ser criadas e decisões têm que ser anuladas.

Esta substituição pode ser operada por dois processos distintos e de resultados opostos.
A - um potencia e operacionaliza a capacidade de decisão (é positivo);
B - o outro estraga e destrói essa capacidade (é negativo).

As ditaduras e, de um modo geral, os autoritarismos usam o estilo [B], fomentam a destruição do decidir com o treino de "não está aqui para pensar, está para fazer" usado nas recrutas e quejandos. O objectivo é criar obedientes a 100% que facilitem a função do mandar.

Pelo contrário, as democracias e, de um modo geral, as autonomias participadas usam o estilo [A], fomentam criar e potenciar decisores. Por democracias não se inclui as democracias travesti com seus cidadãos obedientes-mascarados-de-decisores. 
(ver Blog "Varrer os bugs da Democracia")

PS - Não confundir obedecer com optar-por-decisão-proposta e não confundir propor com mandar
Por analogia, é o mesmo que confundir relação-de-amor com violação mesmo quando legalizada por casamento. Como "teste", qual é a diferença entre making love e doing love que traduzindo surge fazer amor e fazer amor (😂😂😂).

EXEMPLO       
O meu cão, ainda cachorro, habituado a comida recusava-se a comer ração. Cheirava, cheirava e tomava a decisão "não como".
O meu problema era simples, era só substituir decisões, tirar o "não quero comer" e instalar o "quero comer".  Uma simples cirurgia psy, i.é., uma simples troca na vida interior do meu cão. Como fazer?
Falando com o veterinário, ele riu-se e disse:
- É fácil, dois dias sem comer e verá que come logo qualquer ração!"

Pensando sobre a decisão proposta, conclui que devia ter razão. Se durante um ano amarrar uma criança traquinas a uma cadeira, depois passará a vida sossegado. Obedientemente deixa de decidir traquinices.

Numa palavra, o veterinário aconselhava domesticar, i.é, empobrecer a capacidade de decisão. Não me agradou, nunca mais lá fui, não gosto de "broncos" autoritários. O meu cão e eu éramos amigos.

Em vez de destruir decidi potenciar-lhe decisões e procurar solução.
Visitei várias lojas de rações e pedia amostras publicitárias. Regressei com 10 pacotinhos de diferentes marcas que coloquei em 10 recipientes ao lado uns dos outros. Depois, ele entrou e deixei-o decidir. Entre abanadelas de rabo e cheiradelas passeou por todos e escolheu um.
Passei a comprar esse, nunca mais tive problemas e o meu cão não passou fome. De qualquer modo continuei trazendo amostras para ele testar... e às vezes mudava e ele escolhia.

Sempre que comprava comida feita, escolhia algo que ele gostasse para lhe dar um bocadinho depois da ração. Um dia comprei arroz de pato e ao dar-lhe o bocadinho do costume, ele cheirou muitas vezes, mas não comeu e foi-se deitar.
Fiquei pensativo, também cheirei mas não detectei nada, fiquei com dúvidas. Assim obedeci à regra "quando há dúvidas não há dúvida", foi tudo para o caixote de lixo. Nesse dia o meu jantar foram sandes e conservas.
Eu vivia com o meu cão e confiava nas decisões dele.

Como conclusão filosófica, o Descartes com o seu "Penso logo existo" não tem razão, devia ter dito "Opto logo existo" pois "pensar por obediência é não-existir" e com-viver com um obediente é viver sozinho.

EXEMPLO: O Manel e o chefe
Hoje o  Manel fazia anos de casado.
Ele decidiu sair à hora normal (17:00), ir esperar a mulher ao emprego, passear, namorar, jantar fora... um dia diferente para recuerdos.
Pelas 16:00 horas o chefe aparece e diz-lhe para sair mais tarde, emendar o projecto e apresentá-lo pronto no dia seguinte às 09:00.
O problema é claro e simples, o Manel tem que substituir a sua decisão pessoal (jantar com a mulher) pela decisão do chefe (emendar o projecto)... ordens são ordens e obedecer é obedecer.

Na verdade, mandar é pôr alguém a agir com decisões alheias; obedecer é algém cumprir decisões alheias. Ter obedientes decisórios é o "milagre" dos autoritários
(ver história pessoal de Viktor Frankl, psy, "Um psicólogo no campo de concentração").

O que pode fazer o Manel?
Tem 3 alternativas:

1ª - Abandonar a sua decisão, ficar com a do chefe e enfrentar consequências conjugais;
2ª - Manter a sua decisão, abandonar a do chefe e enfrentar consequências laborais;
3ª - "Inventar" nova decisão e gerir possíveis consequências... se existirem.

Na vida real não há regras deterministas, é o mundo das probabilidades e possibilidades, é como o poker em que o jogo não está nas cartas mas nos jogadores.

obediência vs não-obediência equilibra-se com a recusa vs não-recusa e "depende" da situação, suas variáveis, riscos e vantagens. É a dinâmica do campo de forças (ver K.Lewin, Parker Follet, etc)

Não é fácil gerir esta teia de conflitos, principalmente, para quem foi programado para obedecer, que ficou com as tomadas de decisão debilitadas e o "instinto" de cumprir bem instalado.

PS - Excepto em casos limites de destruição mental (lobotomia, brainwashing, tortura, etc) este instalar tem sempre fissuras (bugs), susceptíveis de decisões de ruptura com a obediência. Por des-treino há "cegueira" (decision blindness) nas opções em que a mais imediata é o estilo de "rebeldia infantil" e/ou o "suicídio heróico" (ver Eric Berne, psy).

Muitos anos atrás, no tempo do velho "Estado Novo", obedecer-ao-mando era a primeira e única regra a seguir.
No Liceu, um professor meu(1) há vários anos quando, no corredor, eu me "lamentava" contra regras da Mocidade Portuguesa, ele comentou entredentes: - O melhor é obedecer e não cumprir

(1) - Padre na igreja de Alcântara. Anos depois soube que tinha sido exilado politicamente(?) para a Patagónia. 25 anos depois, reencontrei-o na Parede, falei-lhe, não se recordava de mim mas eu nunca o esqueci nem ao seu comentário que, profissionalmente, me foi útil, várias vezes.

Na época, seguindo o conselho "libertei-me" das formaturas e das marchas da Mocidade Portuguesa que detestava, ao inscrever-me como voluntário na Vela da Mocidade Portuguesa na praia de Algés.
Não era do meu agrado andar ao frio e encharcado, pendurado fora de borda a apanhar com chapadas de água a velejar (bolinar) contra o vento, mas sempre era melhor que marchar.
Ao fim de três anos tive que sair, pois nas regatas era sempre dos últimos, pois discretamente nunca escolhia rumos contra o vento, só velejava a seu favor estilo "passeio" deitado a saborear a paisagem.

No caso anterior, o Manel aplicando o conselho "obedecer e não cumprir" poderia sair mais tarde pelas 17:15 (obedecer), levar o projecto para completar em casa (não proibido) e apresentar corrigido às 0900 da manhã do dia seguinte (obedecer).

Por experiência pessoal em organizações autoritárias, há sempre zonas de não-desobediência que, por coincidência, possibilitam lógicas de não cumprimento. Se, estrategicamente, forem bem geridas podem ser uma solução "cumpridora".

Conclusão

Educar significa potenciar a capacidade de decisão e impedir a sua destruição.
Educar é desenvolver as condições de aprendizagem e aprender é decidir incorporação de significados novos.
A domesticação, tendo a obediência como formato educativo, debilita essa capacidade e o resultado é "não decidir e esperar ordens", portanto, não aprende... decora o ordenado.

Para terminar, uma pequena descrição da domesticação do Tommy feita com tecnologia caseira na qual  só pode "armazenar" (clickar).


Na verdade, aprender obriga a decidir "isto "mexe comigo?" i.é, obriga a fazer sentido (making sense não doing sense):