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quinta-feira, 18 de maio de 2017

Pensar o que somos versus o que temos

Quatro perguntas e uma história...

1ª pergunta

Como ponto de partida, e como poderia dizer um discípulo de La Palisse... "se tivesse nascido noutro tempo e noutro paísEU não seria EU, mas sim, outro EU diferente".

Mas poderia também pensar... "em qualquer época e país, Eu seria sempre o mesmo… só teria linguagem, comportamentos, hábitos, etc…diferentes",

e por exemplo, EU em épocas diferentes... seria "O" mesmo EU???


Numa palavra, […Eu sou o que sou ...ou … Eu sou aquilo que "adquiri" e "tenho" ??...]

2ª pergunta 

...que não se "cala" e me espicaça: "Com tudo o que sou e o que tenho, afinal onde está o Eu???

Uma história:

O Manel tem um problema cardíaco e entra no Hospital para fazer um transplante com o coração que era da Maria. A operação foi um êxito e o Manel sai saudável com o novo coração.

A tecnologia evolui e a medicina também.

O Manel tem um problema cerebral e entra no Hospital para fazer um transplante com o cérebro que era da Maria. A operação é um êxito e o Manel sai saudável com o novo cérebro.

Na perspectiva da pergunta anterior, surge outra pergunta:

Depois da operação, quem sai do hospital é o Manel com o cérebro da Maria ou é a Maria com o corpo do Manel ??

Por outras palavras, o Manel continua vivo ou agora quem está vivo é a Maria "undercover" (disfarçada) sob o corpo que era o Manel???

A história pode ser ficção cientifica mas, se se tornar tecnicamente possível, os debates políticos nos partidos (quem é o líder?), teológicos nas religiões (quem é o pecador?), jurídicos nos tribunais (quem é o culpado?), económicos nos negócios (quem é o dono?) e amorosos nas famílias (quem me beija?) vão ser sérios e animados.

Continuando a prospecção de ideias, as perguntas "saltam", por ex., quando o Manel faz uma festa ou dá uma palmada a alguém, é a SUA mão que decide o que fazer ou é o SEU cérebro que opta e  "manda" a mão concretizar? 
Um filme:


Como se vê, é a mão do Miguel que executa a acção mas é o cérebro da Sam que decide o que fazer (festa ou palmada???) pois o cérebro do Miguel ficou "fora de jogo"… e, por graça dos deuses, ele fica calmo, feliz e não-consciente do que a SUA mão anda a fazer e até agradece aos qu'ridos lideres a sorte que tem de decidirem por ele.

Huau…!!! Huau…!!!, será isto apenas uma forma física (ligação-por-cabo) do que se chama "obedecer a quem manda"????, ou, por outras palavras, mandar é só...

[…fazer é o outro "engolir" as minhas decisões e executá-las em substituição das suas]

ou seja, é este mecanismo que, em termos psicológicos, se chama ser autoritário-obediente, em termos sociais ser ditadura-repressão e em termos culturais ser líder-liderado?

Bom, na verdade e na prática, apesar de não ser ficção cientifica, não andamos por aí "ligados-por-cabo" uns aos outros com relações de mandar-obedecer.

3ª pergunta

...e se for "ligação-wireless"?

Um filme:

Huau…!!! Huau…!!!, afinal parece que também há  "ligação-wireless" e não é ficção científica.

Bom, na verdade e na prática, apesar de não ser ficção cientifica, não andamos por aí a sofrer implantes cerebrais para se ficar "ligados-por-wireless"  em relações mandar-obedecer*.

[*] - Por enquanto (!!??)


4ª pergunta,

...e se for "ligação-por-educação" ???

Na verdade, educar é o educador incorporar padrões na mente dos educáveis, ou seja, uma espécie de implantes cerebrais de execução de comportamentos desejados, por exemplo, come carne versus não come carne, adoras este deus versus não adoras este deus, emigrante é bom versus emigrante é mau, saia curta versus saia comprida, etc. 
O nome técnico (diplomata) destes implantes cerebrais virtuais chama-se culturização nos bem-falantes, educação na sociedade, missionação na religião, marketing nos negócios, propaganda na política, o-que-deve-ser no fanatismo.

Todavia, de um modo simplex, são apenas automatismos comportamentais pré-estabelecidos que temos a par do que somos. A linguagem é um destes automatismos adquiridos:

No restaurante, dizia o dono perante o cliente francês e o inglês:
- Que chamem ao café: "cafê" ou "cófi"… percebe-se que se enganem, mas que chamem "lê" ou "milque" ao leite quando se sabe perfeitamente que é LEITE,... é uma parvoíce!![*]

[*] - Pode parecer uma anedota de implantes cerebrais virtuais mas, jornal 15 Mai 17, um responsável político diz que "…as mulheres não podem trabalhar de saia travada". Considerando que a saia travada obriga a ter as pernas juntas, qual era o trabalho no emprego em que ele estava pensando? Como acrescentou que [...a saia tem que ser larga…] os implantes culturais que ele usa devem estar bem enraizados acerca do trabalho das mulheres.

Uma história de implantes cerebrais virtuais:

O Manel trabalha numa empresa e namora a Maria. Combinaram, pelas 18:00 horas, horário normal de saída, irem passear e jantar fora.
À tarde, o chefe do Manel diz-lhe que tem que ficar até às 23:00 horas para terminar o trabalho.

O que faz o Manel sai às 18:00 e decepciona o chefe ou sai às 23:00 horas e decepciona a Maria?

A - A situação pode ser simples:

Por educação, o Manel tem um implante virtual no cérebro que decide "ao chefe nunca se diz não, não pensas mas fazes" e automaticamente bloqueia o seu sistema de tomada de decisões. 
córtex fica fora-de-jogo e, sem angústias nem hesitações, "ordens são ordens"[*] pelo que a sua decisão de sair e jantar com a Maria desaparece e a decisão do chefe ocupa o lugar.
O chefe é um líder e o Manel é um obediente.

[*] - Na vida militar este reflexo condicionador (Pavloviano?) tem um segundo reflexo condicionado, enxertado para reforço se há hesitações, é a aprendizagem "É uma ordem directa". Em 90% dos casos o córtex paralisa e bloqueia.
A recruta na vida militar pretende inserir esses dois reflexos condicionados a par de um terceiro da "obediência à voz única" vinda do símbolo de hierarquia, galão (oficial) ou divisa (sargento). (ver psicologia de re-educação e treino militar e outros)
A actividade diária de "ordem unida" (marchar ritmicamente em grupo formatado, cumprindo ordens) tem esses objectivos, reforçando a relação "normal" instrutor-recruta "a mão é tua, o cérebro é meu".


B - A situação pode ser complexa:

Por educação, o Manel mantém o seu córtex em pleno funcionamento[*]. 
Neste caso, qualquer uma das decisões tem diferentes vantagens, inconvenientes, pontos fortes e pontos fracos para ele e Maria, quer no momento presente quer no futuro. A integração de todas essas variáveis origina alternativas de diferentes custos e lucros… É PRECISO PENSAR E DECIDIR uma, outra ou aqueloutra das muitas possíveis, pois as probabilidades existentes são muitas (metodologia decisória "What If…"). 

Não imagino o que ele fará, mas o único erro possível é a decisão não ser sua. Por outras palavras, se ficar a trabalhar não é porque o chefe mandou é porque ele PENSOU e decidiu ficar.

[*] - Da mosca ao ser humano (sobre)viver é decidir, i.é., corro-não corro, bebo-não bebo, luto-fujo,etc. Em cada segundo, tomamos decisões, optamos pelo mais correcto, recusamos o mais incorrecto, desde respirar a não-respirar se gases, debaixo água, etc.
Neste sentido, educar é preparar para a vida, ou seja, é preparar para tomar decisões. Educar "amarfanhando" a capacidade de tomar decisões e potenciando o córtex bloqueado (i.é., obedecer zombie "porque-sim") é despreparar para a vida.


A decisão-zombie "passadeira-atravesso" dá multa, tem que ser decisão-pensada "passadeira: atravesso? Sim ou Não??".

Um filme:


Bom, na verdade e na prática, a "ligação-por-educação" não é ficção cientifica, ela anda à solta "aí fora", na família, nos amigos, no trabalho, na sociedade.

Um história

Um dia em África,

desembarcando numa aldeia piscatória isolada, "esquecida" na costa, encontrei um homem (50 anos?) "derramado" contra uma árvores, quieto e abúlico, olhando o ar. 
Tinha um aspecto adoentado e, apesar de ser de cor negra, parecia-me cinzento. Perguntei se estava doente e o que tinha.  Disseram-me que não estava doente, que nada se podia fazer, era o "abico"*

*- Abico: mau olhado(?), bruxedo pelo nome (*), feitiço (?), quebranto (?)

Procurei saber o que era isso, mas a resposta foi estranha. Disseram-me que, quando se nasce, as mães dão dois nomes, o nome real que fica secreto entre ela e o filho(a) e o nome conhecido de todos.
Se alguém souber o nome secreto poderá fazer bruxedo para ele, é fazer "renascer para a morte". Isso é o "abico". Nestes casos, só há que esperar pela morte. 
Aquele homem, estava com o "abico", estava morrendo, nada se podia fazer.

Espantado olhava para ele e pensava que aquilo não era suicídio, nem "morte matada, mas morte morrida", como diria o poeta[*], pois tinha desistido de estar vivo. Mais tarde, percebi que era apenas simples "implante cerebral virtual" que aquela cultura instalava nos filhos.

[*]- João Cabral de Melo Neto, "Morte e vida severina".

Durante os anos que lá estive, em algumas povoações ao longo da costa com pessoas conhecidas, ás vezes perguntava se eles também tinham nome secreto. Ou não respondiam ou diziam que sim e, curiosos, perguntavam se eu tinha. Quando respondia que não, olhavam-me com pena e concluíam "não anda protegido".

Muito mais tarde, ao estudar "mentalizações culturais" relacionei com o implante virtual "mau olhado" da cultura tradicional do Portugal profundo. Nos meus recuerdos da infância lembro-me de "espreitadelas" de rezas para tirar "mau olhado" feitas por "especialistas".

Tudo se resumia a uma lenga-lenga que se dizia enquanto se deitavam gotas de azeite tiradas de uma colher sobre água quieta num prato. Quando funcionava, o azeite dissolvia-se na água e desaparecia, se não funcionava ficavam as gotas de azeite bem demarcadas sobre a água, vendo-se perfeitamente a sombra no fundo.

Já adolescente, no liceu por causa da aulas de Físico-Químicas, andei uma semana a deitar azeite na água (sem lenga-lengas) mas nunca consegui que elas desaparecessem. Acabei por concluir (com ajuda do professor num intervalo) que era um problema de luz, pois as bolhas estavam, mas as sombras desapareciam. Descansei… sempre me irritou baralharem-me os neurónios.

Como conclusão, nós somos o que somos somados ao que temos e realmente estamos cheios de implantes virtuais que, numa linguagem do senso comum, são as "manias" da sociedade em que vivemos. 
O paradoxo é que não podemos viver sem elas e temos que transmiti-las aos nossos filhos. O que podemos, e devemos, é não destruir mas potenciar a capacidade deles tomarem decisões[*], capacidade essa com que a natureza naturalmente nos equipou. Se o conseguirmos isso chama-se DEMOCRACIA.

[*] - A desculpa de educar não justifica destruir essa capacidade.

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