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quinta-feira, 20 de abril de 2017

Pensar o desconhecido no conhecido

Hoje, o meu pequeno almoço arrastou-me para o passado e concentrei a atenção (meditar) em contemplar (pensar profundo) os meus "recuerdos".


Tudo começou com o café quase vazio e apenas duas mesas ocupadas. Numa mesa, uma jovem mulher falava em voz alta no telemóvel numa língua desconhecida com ...muitos "niet"(holandês???). Noutra mesa, dois portugueses conversavam em voz alta.

Como jogo, comecei a estar concentrado nas duas "conversas", procurando também "desconhecer" a linguagem portuguesa e torná-la "sons desconhecidos". O esforço era "copiar" a minha atitude mental de incompreensão perante o "holandês???" para a minha audição do portuguêsDentro de pouco tempo, as duas linguagens tornaram-se apenas sons SEM significados cognitivos, era como ouvir uma canção sem pensar a letra. Era divertido…

Depois os "recuerdos" chegaram…

Dezenas de anos atrás, tive conhecimento de uma escola filosófica oriental que tinha duas actividades complementares. Uma era procurar o conhecido no desconhecido, a outra era procurar o desconhecido no conhecido.
Esta segunda alternativa atraiu-me, aprofundei, e, na época, criei um jogo pessoal a que chamei "ciganada", ou seja, tornar-me nómada no conhecido até ele ser desconhecido, umas vezes com situações concretas,  outras com situações psicológicas do género das conversas atrás descrita de tornar o português uma língua desconhecida.

As situações concretas eram fáceis e divertidas. Começou em Londres, onde ia algumas vezes em trabalho com colegas, e costumava sair do hotel (de dia e depois de noite pelas 23 horas) sem mapa e sem destino. Aleatoriamente, dirigia-me sempre para algo que me chamava a atenção desde uma rua estreita, montra estranha, homeless, etc, até que "não sabia onde estava, nem como regressar". O meu problema começava nesse momento.
Na época, chegava a regressar ao hotel pelas 2 ou 3 da manhã. A minha colega, sabendo do que eu chamava um passeio nocturno, não acreditava ou dizia que era maluco.

Entretanto no café,  os "recuerdos" sucediam-se…

Quando estive em S.Diego (USA) resolvi passar a fronteira e ir a Tijuana (México) e fiz lá uma "ciganada". Em determinada altura, um mexicano idoso acenou-me, apontou-me um letreiro onde dizia "Out of bounds" e encolheu os ombros. Percebi a mensagem, por gestos perguntei para onde, ele apontou, agradeci, dissemos adeus e voltei para fora do "Out of bounds".

Estive vários dias sozinho em Santiago (Chile) e um dos meus prazeres eram as "ciganadas" nocturnas nas zonas populares não turísticas. Tinha o "truque" de falar português próximo a grupos familiares e amigos que apanhavam o fresco da noite e, a partir daí, tinha companhia para o resto da noite.
Fazer "ciganadas" nas zonas ricas de Santiago era caminhar na solidão.

No Chile, nas zonas populares, o jogo era... dentro do conhecido "grupo familiar estranho" adquirir o desconhecido de "ser grupo amigo dentro do grupo estranho".
Nas zonas ricas, o grupo estranho era sempre só grupo estranho.

Como situação psicológica, um jogo que fazia várias vezes quando guiava na marginal era "destruir" o conhecimento do que ia aparecer a seguir à curva. 
Por exemplo, na subida a seguir à Praia de S.João tentava "não saber" que na descida estava o parque do casino. A técnica era provocar visualizações imaginadas (floresta, bairro de prédios altos, etc) até instalar a expectativa "do que será?". 
Por pouco êxito que tivesse, às vezes tinha a alegria da surpresa de ver "o que sabia que estava lá". Era uma espécie de "déjà vue" pré-fabricado.

Na prática, a aprendizagem procurada pela escola oriental é viver a vida por procurar conhecer o que não conhece e também procurar o constante desconhecido no que conhece.

Gostar de alguém é todos os dias ter o prazer
de encontrar o desconhecido que está nele (nesse alguém).
Zen

Para terminar esta manhã de "recuerdos de recuerdos", um exemplo, do que aconteceu na Páscoa deste ano, com a alegria de descobrir o desconhecido no conhecido.

Na família, uma criança (18 meses) sempre se relacionou comigo com um "ar cerimonioso e circunspecto", amoroso e sorridente mas diferente da familiaridade com pais e conhecidos habituais.

Por motivos particulares, nesse Sábado de Páscoa, pela primeira vez, andou 5 metros na minha direcção, esticou os braços para o alto para eu lhe pegar ao colo e depois apontou para onde queria ir. Fiquei espantado, não esperava e... este "desconhecido" que estava ao meu colo, e fazia parte daquele"conhecido que conhecia", foi a melhor prenda de Páscoa que podia ter.

A vida é, sempre e só, encontrar o desconhecido no que conhecemos.
Zen

…não é garantir a eficácia e eficiência das rotinas conhecidas.


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