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segunda-feira, 29 de maio de 2017

A boneca aprisionada

A boneca triste
Uma manhã triste no café pois vivia-se uma 2ª feira despovoada, mesas vazias, clientes fugidios.

Numa mesa afastada, uma mãe, trinta anos(??), corpo amorfo e "embotado" mas com cara tensa e vincada, rotinadamente, "aperfeiçoa" a filha de um ano, sentada sobre a mesa.

Mecânica e suavemente, alisa a renda do vestido, corrige um cabelo fora do sítio, limpa um sapato e, com gesto brusco, ajeita-lhe um braço… e, assim, o tempo passa numa constante correcção de pormenores… mas, e a criança?

Imóvel, estática e quieta, de expressão parada, olha em frente e devagar mas sem olhar, a mão aproxima-se da caixa dos guardanapos. Com gesto rápido, a mãe afasta a caixa e põe-lhe o braço, "como deve ser" na posição anterior. Fiquei a pensar, seria autista????

Um estranho (60 anos??) senta-se na mesa ao lado com jornais e revistas. A criança e o estranho olham um para o outro, ela estica a mão na sua direcção, palra e ri-se. Ele dá-lhe um postal que tira da revista e que ela aceita e depois oferece. Começou uma brincadeira de "toma lá, dá cá", em que ele se ri e ela também… divertem-se. O "autismo" desapareceu.

Uhau…afinal não era autista... era só uma "boneca aprisionada", engaiolada.

Quando trabalhei no Hospital Júlio de Matos, no Centro de Saúde Mental Infantil de Lisboa, encontrei crianças com comportamentos semelhantes, mas não tinham esta instantânea alegria e disponibilidade com estranhos. 

Aqui, não me parecia que fosse a mesma situação pois não devia ser um problema interior mas apenas o resultado de um problema exterior, uma defesa instintiva de "prisioneiro versus o perseguidor-carcereiro", reconhecível em crianças, adultos e animais (particularmente cães) nesta situação.

Entretanto, a mãe, "agitada", dizia "- Desculpe! Desculpe! Querida,.. olha para mim, olha para mim,..." mas a criança não ligava, continuava a sorrir e a brincar ao simples "toma lá, dá cá". Tinha encontrado um amigo.

A minha melancólica estranheza foi que ele, um estranho, era mais pai do que ela era mãe e, principalmente, porque a criança, ainda sem saber falar, já sabia reconhecer e optar pela diferença!!!
Na verdade, desde a nascença que o afecto se reconhece e sente pela pele, quer nos humanos quer nos animais ou, como se diz na cultura USA, o afecto existe "by the skin and not by the book", isto é, existe "pela pele e não pela cabeça com suas regras".

Raizupartiça,…o que acontece aos humanos?

A minha manhã de relaxar "conversando" com a torrada tinha acabado. Regressei a casa e fui "desabafar' com o tablet.

Na verdade, estas inovações modernas substituem com eficácia o confessionário e/ou o psicanalista, pois o tablet não me sugeriu que o problema era meu, dado que ninguém tinha reparado, nem me impôs penitências a cumprir, nem comprimidos a tomar, nem traumas de infância a pesquisar.

Em consequência, ficou-me o remorso de ter consentido pois não usufruí daquelas "bengalas" de SOS (confissão ou psicanálise) para o aliviar… assim, lá tenho que me aguentar a mim próprio.



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