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quinta-feira, 15 de novembro de 2018

O amor e os haiku's


Um passeio mental pelos haiku's e pelo amor.

1 - Mote

Como aviso aos desconfiados, haiku não é um novo truque pornográfico para o amor, é um poema tradicional japonês muito especial, pois tudo é dito em 17 sílabas, agrupadas em 3 conjuntos de 5+7+5: 

Ochi kochi ni
tachi no oto kiku
wakaba mana

Apesar de eu não saber japonês, há muito tempo que é um dos meus hobbies favoritos, socorrendo-me de traduções "aproximadas" e explicações culturais, tentando "sentir" os seus subtis "toques" de sensações inesperadas... como em qualquer outra poesia. 
Ouvir em alemão uma poesia de Florbela Espanca não é a mesma coisa que ouvi-la em português, mesmo que se entenda o alemão.

As crianças sem saber inglês, se cantam uma canção inglesa gostam de fazê-lo em inglês, eles sentem que se traduzirem perde-se muito na tradução, portanto, fica sem graça, não tem ritmo, não tem emoção.

A "Tradução" é o segredo do êxito e fracasso de amores, paixões e haikus. A diferença dos haikus para a poesia comum é que eles levam até aos limites a importância da cultura instalada para serem "lidos", tal como o amor.
Mesma mensagem, diferente significado
Mesmo quando as traduções são boas são sempre incompletas e com bugs. Tudo se baseia em "ditos" (verbais ou não-verbais) emitidos e recebidos, nunca sendo eles os mesmos a 100%.
O importante não é o que se diz e se ouve, o importante é se o significado emitido pelo "dito" é o mesmo significado que o "dito" provoca.
Um exemplo de "ditos" e diferentes significados produzidos:


(in "Lost in translation", 1 oscar, 97 vitórias (wins), 127 nomeações)

2 - Haiku

Quer o haiku quer o amor ambos vivem de mensagens pequenas e discretas mas de efeitos grandes e inesperados onde tudo se ganha e tudo se perde na tradução do "dito para o significado".

Os amores têm um paradoxo curioso pois no seu início as "traduções do significado" são melhores do que no "quarto minguante" pós "lua de mel". 
No início, quando um quer algo o outro percebe logo, a linguagem não-verbal (e verbal) funciona bem com as hormonas a traduzir. Mais tarde as traduções ficam cheias de bugs, na gíria chama-se "falta de comunicação" em que a frase mais vulgar nesta etapa é [...o que disse... NÃO FOI ISSO!!! ] e o divórcio aparece .

Por outro lado, nos "amores longos" parecem ser irmãos gémeos, entendem-se rápido sem frases ou por meias palavras, com traduções instantâneas perto dos 80-90%, e os toques corporais são vulgares e constantes. Com o divórcio já no horizonte, os toques (strockes) corporais só aparecem por dever conjugal ou pressões hormonais.

É interessante pensar no amor comparando com o processo dos haiku's. 

Para saborear um haiku é preciso saborear um nível escondido de compreensão. Dizer muito num jogo de significados para criar uma emoção inesperada apenas com 17 silabas distribuídas 5+7+5... não é fácil.
A sua base é semelhante à de qualquer poesia pois precisa detonar emoções já instaladas no senso comum cultural.

Quando li a "Morte e vida Severina" do poeta brasileiro J. C. Melo Neto, fiquei encantado pois a dança das palavras com o entrelaçar dos seus significados eram para mim perfeitamente claros. Conclui que o brasileiro era também a minha língua.  

Estando na época em Cabo Verde e morando no Mindelo com vários conhecimentos locais, comecei a procurar letras de mornas escritas em crioulo, foi um mundo novo que descobri. Tive a sorte de conhecer Cesárea Évora com seus vinte anos e ouvi-la cantar.
Realmente uma morna em crioulo não é uma morna em português, tem um sabor diferente... intraduzível. O truque de ter previamente "apreciado" as letras em crioulo foi muito útil. A consequência foi ficar fan da poesia em crioulo.

As palavras de uma língua fazem parte da poesia, não só pela sua sonoridade própria como pelos significados afectivos e emotivos que trazem consigo. O haiku obriga a levar isto ao extremo para rentabilizar as suas 17 silabas na construção e entrega de significados. Retomando o haiku de inicio:


O ritmo silábico (5+7+5) desapareceu mas, com a tradução, um truque sonoro-afectivo também desaparece.

As 12 sílabas dos dois primeiros versos [Ochi kochi ni tachi no oto kiku] dão o contexto de aqui e ali se ouvir as cachoeiras. Porém se lidos em japonês a sonoridade da lingua cria semelhanças sonoras com o ruído da água a cair nas cachoeiras. O leitor sentir-se-á como se fosse a folhagem jovem a ouvir a cachoeira. 
O texto ao ser traduzido perde a similitude sonora. Parte do haiku perde-se na tradução.

Outro aspecto importante é a intima e fundamental conexão dos versos do haiku com os pacotes culturais já instalados no leitor, as chamadas "carimbadelas culturais" (inprints).

PS- É esta a principal afinidade entre os haikus e o amor, pois o êxito ou fracasso de ambos depende da validade da sua conexão com a cultura instalada em quem usufrui a relação. Uma prenda, palavra ou gesto de amor para quem dá, pode ser uma ofensa na cultura de quem a recebe (ver §3: "Amor"). 

O haiku, para dizer muito e significativo, tem apenas 17 sílabas com a disposição 5+7+5 para o fazer, o que obriga a escolher palavras para além do seu significado. Obriga  que sejam sejam links  culturais (activadores) de emoções e afectos já instalados no senso comum e é aí que todo o jogo vai ser jogado. 

Portanto, se o haiku for traduzido para outra cultura, existe o risco das traduções não conectarem as mesmas afectividades e o haiku não funcionar, ou seja, não activa os significados pretendidos. Numa palavra, é apenas uma sequência de palavras em pobreza significativa.
Eis um exemplo de pobreza significativa num poema ocidental:

Um queria fazer de Mário um sábio, 
outro, um filósofo, 
outro ainda, um patriota, 
outro, um homem de bem, 
outro, um moralista, 
outro, um santo. 
Não foi nada disso. 
Foi um encantador.

OK, é bonitinho... e depois? Qual é o impacto? Qual a surpresa emotiva? Pffff... nada de novo, sendo possível acrescentar mais... futebolista, apresentador TV, fadista, vendedor, etc... a lista é enorme.

O poema é de Ernest Renan mas foi por mim alterado, o verdadeiro é:

Um queria fazer de Jesus um sábio, 
outro, um filósofo, 
outro ainda, um patriota, 
outro, um homem de bem, 
outro, um moralista, 
outro, um santo. 
Não foi nada disso. 
Foi um encantador.

No plano das "conexões emotivas" prévias, com a palavra Jesus o epílogo "encantador" fica com um "gosto" diferente quer para o leitor religioso quer ateu. Com Mário, o "encantador" é só, talvez, um tipo simpático, bom para vizinho.

A palavra Jesus, no leitor ocidental religioso ou ateu, está cheia de conexões afectivas, emotivas e intelectuais que muda toda a leitura, passando a poesia de bonitinha para significativa. É suficiente oscilar nos nomes de Mário e Jesus.

Estas conexões de "linkagem cultural" são o segredo comum dos haiku's e do amor.

Se substituir Jesus por Shiva, Manitu, Ranginui, etc, pertencentes a outras religiões o resultado é o mesmo. Só nas comunidades dessas religiões o poema poderia funcionar e não ser apenas bonitinho.

Para terminar,  um outro exemplo com um Haiku traduzido:

O velho carvalho
contempla
flores de cerejeira

Lendo o poema com os habituais significados das palavras escritas pouco se compreende, além da informação literal e uma certa emoção débil e difusa, o vulgar bonitinho da poesia avulsa.
Todavia o haiku não é poesia de supermercado, é uma primorosa abertura para algo complexo e significativo. No dizer de um especialista, o prazer de ler um haiku é [...procurar o oásis escondido no deserto...].

Neste haiku, o velho carvalho traz uma conexão à afectividade japonesa das "bodas de carvalho", a comemoração de 80 anos de vida em comum, uma espécie da conquista do Everest para a felicidade do casamento. Substituir velho-carvalho por velho-pinheiro o haiku iria [...perder a sua alma...].
Contemplar significa um olhar calmo e paciente, meditativo, bem diferente do rápido e fugidio "ver de relance" de quem olha sem ver.
As flores de cerejeira são delicadas, frágeis, momentâneas, com vida curta, e no Japão são símbolo do precário e do efémero. Substitui-las por perpétuas, flores que como o nome indica aguentam tudo, desaparecia do haiku a noção de fragilidade e ele [...perderia a sua alma...].

Assim, este haiku é o confronto entre a fragilidade do que aparece-desaparece no movimento da vida   versus o que dura centenas de anos até ir também para o passado. 
Lenta ou rápida, a vida do carvalho e das flores de cerejeira funciona do mesmo modo e saber isso traduz-se no olhar calmo, paciente e meditativo do velho carvalho na sua certeza do inevitável.
Esta sabedoria de vida é reforçada com a palavra "velho", link directo ao afecto de respeito pelos idosos, afectividade bem forte e bem inserida na cultura japonesa.

A simplicidade aparente do haiku afinal é bastante complexa.

Dois haiku's, meus preferidos:
-1-
A chuva pára,
uma rosa
levanta a cabeça.
___________
-2-
Olho para um lagarto 
entre duas pedras,
ele olha-me também.
A latere:

O Haiku é só uma proposta ao leitor para o construir na sua mente. Na prática é quase um teste Rorschach sem borrões de tinta (hemisfério direito?) mas com palavras (hemisfério esquerdo?).
Assim, em dias diferentes nascem haikus diferentes do mesmo haiku, dependendo das "linkagens escolhidas" e associadas nesse momento. Ele é só um "activador" de afectos, emoções, memórias, sonhos, etc, em função da bagagem de inprints culturais do leitor.

In praxis, em relação ao primeiro haiku:

Para formação, uma das técnicas é activar a imaginação. O processo é ir construindo um filmeco com  imagens adequadas aos significados que nesse momento "pululam" (swarm) na mente do leitor:

1º - Pode imaginar-se uma chuva ligeira com sol a espreitar e a rosa salpicada de água, caule forte e pétalas brilhantes. Entre nuvens brancas aparece um sol tímido que, cada vez mais vivo, faz a rosa renascer (sorrir), ou...

2º - pode imaginar-se uma chuvada forte e cerrada, com a rosa encharcada de caule quebradiço e pétalas baças. Entre nuvens negras surge uma tempestade que, tapa o sol, morre a luz e a rosa definha (chora).

O filmeco imaginado será aquilo que nesse momento o leitor "traduz" do haiku, dependendo dos inprints linkados e activados.

PS - Eu gosto deste haiku porque para mim, e afectivamente, o primeiro cenário é automático e o segundo só surge por imposição lógica.
Todavia, por/para treino, é possível trocá-los e pôr o 2º em afectivo automático, ou seja, é passar da atitude optimista a pessimista e vice versa (treino de auto-indução).

O interessante é que o amor funciona exactamente com o mesmo processo e suas hipóteses de auto-indução.

3 - Amor

O que é o amor? 
Talvez seja preferível pensar com uma pergunta menos filosófica, "como se manifesta o amor?".

Na prática, o amor são trocas de expressões (beijos, festas, carinhos, etc) que não valem por si próprias mas apenas  por transportar significados... e aqui começa a confusão.
Na verdade, estas expressões são codificadas pela cultura vigente com significados standard e o seu uso pode originar aparências percebidas como realidades.
Exemplo

- Dantes, em casa de meu pai ao namorar, seguravas-me as mãos, agora JÁ NÃO!!!
- Dantes, havia piano e tinhas a mania de o tocar!!!

Agarrar as mãos pode ser afecto ou controlo. No ex., o emissor tem o desejo de controlo que "traduz" com o gesto namoradeiro (afectivo) das "mãos entrelaçadas". Por sua vez no receptor as "mãos entrelaçadas" são  obviamente(?) "traduzidas" com o significado de afecto e sente carinho, amor.

Na realidade, no amor tudo se ganha e se perde nas "traduções". Os significados e seus veículos (palavras, gestos, situações) são apenas meras peças do tabuleiro. O que se sente (significado) e o que se diz/faz (expressão) não são factores críticos do êxito ou fracasso da relação amorosa.

O único FCS - Factor  Crítico de Sucesso é a sintonia das traduções que ambos fazem. Os essenciais,  significados e expressões, só valem o que suas traduções valem. Num esquema simples,


O sentir do emissor pode ser verdadeiro ou falso, a expressão pode corresponder ou ser camuflagem. Mas essa expressão recebida é traduzida e cria um sentir no receptor, verdadeiro ou falso.

A relação amorosa só depende da dinâmica destas duas traduções e suas mútuas percentagens de sintonia, quer sejam as duas verdadeiras, as duas falsas, uma verdadeira e outra falsa.
Exemplo:

O Romeu pertence a uma cultura de deserto onde a flor do cacto é símbolo de fidelidade e persistência pois sobrevive mesmo em ambientes adversos. A flor é algo evidente, notório e os espinhos são detalhes apagados e invisíveis. Assim, um significado importante (amo-te) é dito à Julieta, através do envio da flor do cacto como símbolo da sua fidelidade e persistência amorosa.

Todavia, a Julieta, num país cheio de flores em ambiente acessível, ao receber o cacto não "vê" a flor, vê um monte de espinhos agressivos de difícil contacto. Furiosa com a espinhosa e agressiva prenda, fazendo a prisão da infeliz flor, o que era afinal a imagem do futuro proposto e não lhe agradava.
No mínimo, atira-lhe o cacto à cabeça... com o vaso atrás.

Assim começa e acaba uma paixão, tudo perdido na tradução. O amor é um processo primitivo parece simples e imediato mas é complexo e rebuscado. A sua simplicidade é enganadora pois está cheia de  variáveis e os seus "óbvios imediatos" nada têm de óbvio.

Reformulando a resposta anterior ter-se-á "amor são trocas de significados" e não de expressões que são apenas sinais a serem interpretados.
A definição parece clara e é, ...até se perceber que é confusa pois os sinais transmitidos para dar o significado NUNCA dão garantias do significado recebido. No exemplo:
As confusões instalam-se entre o sinal de assobio e o sinal de beijo oferecido.

Porém é tudo mais complexo, pois há mais variáveis, por ex., o estado do córtex tem que ser semelhante, ou seja, "estarem no mesmo clima" (to be in the mood).
Exemplo:

Um Romeu, a quem as dores da cólica renal da sua "alma gémea" angustiaram, resolve fazer-lhe de surpresa um mimo, um beijo apaixonado. Mas o córtex da sua "alma gémea" embrulhado em dores "está noutra" e traduz isso como uma dentada à socapa. 
Nesse momento as duas "almas gémeas" não são nada gémeas.

O amor não vive de actos amorosos, vive de significados recebidos como amorosos e isso não depende do acto, depende da "tradução" feita por quem recebe e esta depende do estado afectivo-mental do tradutor.
"Defender-se" com o argumento "eu disse/fiz" não é defesa é ataque, pois subentende parvoíce, desinteresse ou cegueira do outro. A questão verdadeira é "o que significou?" nesse momento.

O amor não é uma burocracia "input-output", é uma constante e sensível empatia ao que acontece no outro e agir em concordância consigo e com o outro.
Alguns autores chamam-lhe "duplo vínculo" (double bind) não no sentido de G. Bateson de afecto e agressividade simultâneos, mas de equilíbrio de um acto com duas afectividades as mesmo tempo. 

REGRA Nº1 do amor - Não há actos amorosos COM efeitos óbvios e garantidos, tudo depende do significado com que são recebidos. Este significado é independente do significado original do acto dito amoroso. 

Por maldade dos deuses, o ser humano relaciona-se com outro ser humano sempre com o jogo da "verdade ou aparência", pois nunca pode ter a certeza de ser verdade ou aparência do que acontece no plano amoroso.
Esta maldade (ou sabedoria) dos deuses não me aborrece pois é a garantia de que nas relações humanas o determinismo é impossível, pois qualquer causa pode ter qualquer consequência. O ser humano não é uma burocracia, os filósofos chamam a este indeterminismo o livre arbítrio.

Como curiosidade, o jogo "verdade ou aparência" é a base do teatro, pois só se o actor aparentar (mentir) bem em ser a personagem só assim o teatro pode ser verdade. Parafraseando José Régio, quando essa mentira (aparência) é bem representada chama-se expressão artística. 
Se o actor não representar mas estiver realmente vivendo a situação, chamar-se-á expressão vital e não será artístico. Uma mãe expressando bem o sofrimento pela morte do filho não é expressão artística é expressão vital.

O actor tem que ter um duplo vínculo (vide Stanislavsky), ou seja, sentir o personagem e ver-se a sentir o personagem não sendo por ele  "canibalizado" (vide "Kean" de J.P.Sartre). O amor também tem muito de duplo vínculo.

Aliás, segundo Freud, até a relacionar-se consigo próprio o ser humano joga esse jogo de "verdade ou aparência" pois muitas vezes nem ele, o próprio, sabe a diferença: "Afinal, eu pensava que gostava dele(a) e não gostava".

Em resumo

Os significados sendo incorpóreos, não têm existência material, portanto apenas se captam por aquilo que os expressa. Os expressores são vários e variam com culturas e sub-culturas.
Por exemplo, pode ir de um simples sorriso de cumplicidade até um ajoelhar vocalizando o célebre significado "amo-te" e chama-se declaração de amor. Como é evidente este "amo-te" pode ser "verdade ou aparência" para quem diz e/ou para quem ouve.

Esta fase de significado expresso pode ser oficializada com outro significado expresso o "amo-te prá vida inteira" e chama-se cerimónia de casamento, também igualmente possível de ser "verdade ou aparência".

Esta insegurança angustia os seres humanos e como solução "metem a cabeça na areia", isto é, se não veem não existe. Como não veem significados e não veem amor, mas veem beijos, caricias e sexo, então, beijos, caricias e sexo é o amor.

Huuuauuu... assim esquecem o conteúdo e ficam só com o embrulho, esquecem o significado e ficam só com o envelope. Deste modo a confusão acabou... todavia foi substituída pelo caos e tudo ficou pior, simplificado e atabalhoado.

4 - Conclusão

Haiku tem 17 sílabas, é complexo e significativo e vive de poucas palavras. O amor também vive de pequenas acções, é envolvente e marcante. Ambos dependem de pequenos "triggers" (detonadores) que agarram e se enraízam afecto-emotivo no íntimo profundo de cada um.

Na verdade viver um grande amor não se traduz em todos os dias chegar a casa, ajoelhar e fazer uma complexa declaração de amor com citações religiosas da Biblia, Cântico dos Cânticos [...Beije-me ele com os beijos da sua boca; porque melhor é o seu amor do que o vinho...] (Cânticos 1:2).

Pelo contrário, o amor vive de pequenos gestos cujos significados são claros e estão vivos na memória desde um aceno até um ritual rápido com significado e não distraído a despir o casaco, guardar as chaves, etc. Quando são só actos rotineiros e protocolares, o divórcio está no horizonte.

In brevis, amor são significados vividos e comunicados em pequenos gestos e poucas palavras, ao estilo haiku.

Quando a comunicação é por actividade sexual e os seus vários "jeitos e trejeitos" são vazios de significados, chama-se pornografia e é a base do negócio dinheiro-prazer; ou ginástica-terapia sexual para manutenção fisiológica à espera de melhor oportunidade; ou pro bono para manutenção da espécie (reprodução), função que nos animais se chama cio.

A base destas alternativas de sexo-vazio-de-significado, e apenas retendo os seus dois objectivos funcionais, tem uma realidade fisiológica clara (vide W. Reich, medico psicanalista). 
O sexo, fisiologicamente, baseia-se em hormonas (bioquímica) e em convulsões nervosas de prazer (bioelectricidade), vulgarmente simultâneas (ejaculação-orgasmo) apesar de poderem não o ser pois dependem de órgãos diferentes, isto é, glândulas (ejaculação-espermatozoides) e nervos (orgasmo-prazer).

Com a ejaculação, a espécie resolve o problema da sua continuidade pois detona a fecundação. Como é óbvio, em vítreo, há fecundação e não há orgasmo.
Com o orgasmo, a espécie resolve o problema da motivação para ejaculação. Como é óbvio, em masturbação, contraceptivos, etc, há orgasmo e não há fecundação.

Em resumo, a actividade sexual é um veiculo físico para expressar um significado afecto-emotivo e fazê-lo sentir ao outro. É um transmissor, um transportador, não é um conteúdo. Todavia esta actividade transmissora de significados pode funcionar com e sem significados para transmitir. Neste caso, há três estilos de adeptos:

1º -  Os adeptos em que para além dos objectivos fisiológicos (fecundação e orgasmo), e não os contestando, têm filosofias laicas ou religiosas de existir outro nível co-lateral (psy e/ou espiritual), que é o aspecto fundamental, resultante de simbiose afecto-emotiva inter-humanos, conhecida por "amor" [...em que com ele tudo tem significado, sem ele nada tem significado...].

As suas variedades são muitas quer religiosas quer laicas, desde êxtase religioso, amor humano,   EAC- Estados Alterados de Consciência, hedonismo, etc. 
A bibliografia é vasta, mas o paradigma base é o sexo ser um meio de troca de significados psico-afectivos afectando positivamente o ser humano. 
Sem esse factor de troca afecto-emocional, o sexo é apenas agitação neuro muscular com efeitos glandulares e nervosos, como qualquer funcionamento de um sistema fisiológico. 
Por exemplo, a digestão tem efeitos glandulares (sucos gástricos) e nervosos (satisfação relaxante por saciada)... ou beber álcool, inserir drogas, etc.
Ao sexo como actividade física que é meio e é expressora de troca afectiva foi chamado making love, pois cria um intenso vínculo de significados afectivos, aquém e para além da actividade física . 

Porém, este nome traduzido em português ficou fazer amor e no senso comum nacional é uma espécie de chapeu de chuva sinónimo de sexo, quando falado em linguagem discreta e erudita. (ver 3º estilo, a seguir).

2º -  Os adeptos em  que a função de reprodutora do sexo é a sua única e principal humanização e sem esse objectivo o sexo está des-humanizado. Como complemento, sem essa intenção reprodutora a única solução para usar o sexo humano é não ter sexo, a chamada abstinência.

Esta posição, sob o ponto de vista lógico, é um paradoxo interessante.

Não conheço nenhum biólogo que apresente um caso amoroso romeu-julieta entre bois e vacas. Na verdade o sexo animal parece ter só escolhas genéticas "instintivas". Por exemplo, a fêmea aceita ou não um macho por sincronias ou des-sincronias genéticas e um macho, mesmo existindo cio, não tenta fecundar segunda vez a mesma fêmea, desinteressa-se pois a probabilidade genética está consubstanciada. O chamado "efeito coolidge".

Os prelectores desta opção, ao divulgá-la em conferências e palestras citam-na como "fazer amor reprodutivo" ou "fazer amor controlado", nunca explicando se o que é controlado e reprodutivo é a reprodução ou o sexo. 

Em Portugal nos anos 60, esta questão estava na moda com o problema do controlo de natalidade. O método Ogino-Knaus andava por aí, com o OK do Papa Pio XII em 1951, e na altura assisti a várias conferências e li vários manuais.

O método dito natural não me incomodava mas os pressupostos filosófico-religiosos de apoio incomodavam-me por razões de lógica pessoal.
Não percebia como a humanização do sexo humano era obtida por reduzi-lo à reprodução, ou seja, apenas fazendo sexo com intenção de reprodução. Parecia-me mais conversa técnica de agricultores a propósito de rebanhos.

Na altura estava fazendo um cursito sobre o ponto Omega nas teorias do Padre Jesuíta Teilhard de Chardin e aproveitei para tirar dúvidas. Não fui feliz. Por exemplo, perguntei se o estupro com fecundação podia ser incluído na teoria. Só obtive palavras soltas e muitas citações estilo listagem Google.
Resolvi insistir e então, perguntei se o "dever conjugal" para reprodução seria aceite. Agora recebi citações ao estilo Yahoo.

Realmente a minha questão parecia-me simples. Se humanizar o sexo humano é aproximá-lo do modelo animal que só têm sexo para reprodução, em síntese, humanizar o sexo humano é animalizar o sexo humano.
Não percebo... os deuses me ajudem.

Não desisti e numa conferência pública sobre o tema, na altura das dúvidas quis ajudar. Relacionei a teoria com o modelo sexual animal e salientei que os animais tinham o sinalizador olfativo do cio para "apontar" altura de sexo e isso faltava no sexo humano... e tinha uma solução.

Considerando que o método Ogino-Knaus já tinha o OK do Papa Pio XII, então era só preciso usar o método ao contrário. Detectado o período da ovolução (prontidão para engravidar) em vez de usar para evitar sexo (contracepção) era usar para fazer sexo só nesse período e ser proibido antes ou depois.

Desta vez a resposta não foi Google nem Yahoo... foi silêncio "pesado"e o microfone passou para outro. Não tive resposta, conclui que não foi aceite. O meu superior hierárquico militar (católico) estava lá com a família e "avisou-me" que não gostou.

3 -  Os adeptos em que o prazer é o sustentáculo da vida (hedonistas) e assim esta posição tem o  seu centro no orgasmo com os seus 7 segundos (em média) de "convulsões prazenteiras" no sistema nervoso. Os seus aditos são "clientes" garantidos.

Como é usual nas sociedades humanas se há procura cria-se oferta. Assim desde a antiguidade que se criou o negócio dos orgasmos quer com empresas (prostíbulos) quer com trabalhadores independentes (prostitutas). Os seus clientes são muito simplex's, não estão interessados em reprodução nem em "espiritualidades Romeu-Julieta" só querem a convulsãozita nervosa!

Dica colateral
Em português, "making love" é traduzido por "fazer amor". Como traduzir "doing love"??
Significará o mesmo??
Observado do exterior,  uma relação amorosa e uma compra sexual distinguir-se-ão??
Talvez não, mas uma prostituta, profissional do sexo "doing love", sabe a diferença, e para ela trabalho é trabalho, e amor é amor. São universos distintos.


Pois é... o beijo pertence ao "making love". Profissionais sabem a diferença entre "making love" e "doing love", amadores só conhecem "love"... e depois dizem-se enganados mas são apenas amadores palonços.

Para terminar dois haiku's sobre "amores diferentes".

Olhei-a, ar parou, 
estremeci, sou outro,
  foi making love

Toquei-lhe, mudei, 
 fiquei igual ao que era, 
é doing love

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