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sexta-feira, 13 de junho de 2014

Leitura e estado de sonhador …ou não!


- "Estar na natureza não é ver plantas e animais
é sentir a vida que transportam consigo…!!!!",
diz o Shaman para se viver a Vision Quest.

- "Ler não é vocalizar palavras 
é sentir os seus significados (dreaming state)…!!!",
diz o leitor para se viver a leitura.

Refraseando o núcleo destas declarações (statements), e num ponto de vista dialéctico, pode dizer-se que expressam a dança do paradoxo "forma e conteúdo" que  nos "assombra" a vida em muitos dos seus aspectos, entre eles ...a leitura.

Assim,… uma questão de partida:

- "Como nos ensinam a ler ???" ou
- "Como lemos???"

… e um axioma de partida:

Aprender a ler não é reconhecer palavras e conseguir vocalizá-las, é "surfar" nos significados que elas transportam consigo,

ou seja, aprender a ler é aprender a "sonhar acordado", é ser empurrado e manipulado por palavras escritas cujos significados se tornam tão intensos que tudo o resto desaparece,... as palavras, o livro, o contexto, nós próprios deixamos de existir, tudo se resume a significados (ideias-emoções) entranhados nos nossos neurónios…e embrenhados na leitura passamos a "sonhar acordados".

Jovens e adultos que não gostam de ler é porque não conseguem alcançar este patamar psicológico…é porque para eles […ler formas domina com tal intensidade o conteúdo existente que o sonho acordado nunca acontece…. Quando este equilíbrio se inverte e ler formas desaparece para se saborear conteúdos, então, nasce o leitor.]

Há vários métodos e técnicas que podem favorecer ou bloquear este nascer do LEITOR, muitos de transmissão tradicional e que são usados com inconsciência dos seus efeitos.


A dança "forma e conteúdo"
(citado no Blogue Pinçamentos "As portas da percepção" de 03 Jun14, em http://pincamentos.blogspot.pt/2014/06/as-portas-da-percepcao.html )


Como exemplo, […quando uma criança ouve uma ave cantar, ouve o seu contentamento, a sua alegria no viver, a sua vibração feliz…] que vem [... directamente do "background" do canto da ave…].

Esta situação em que não se percepciona a "forma" mas se sente o "conteúdo", é aquilo que os shamans chamam o "ver antigo", isto é, o ver sem intermediários, situação habitual e normal nas crianças de pouca idade,
[... crianças pequenas, porque as "portas de percepção" ainda estão muito abertas, são por natureza mais atentas aos fluxos sensoriais que lhes chegam e respondem com maior implicação às suas estimulações sensoriais, consideradas irrelevantes pelos adultos…] (S.H.Buhner)
Obs - English
[…younger children, because gating is still much more widely open, are by nature more attentive to the sensory flows coming in to them and respond with greater attentiveness to the feeling of the stimuli, considered irrelevant by adults…]   

Porém por processos de aculturação, esse predomínio do conteúdo sobre a forma pode ser invertido ficando a "forma" (veículo) a dominar a recepção, abafando o "conteúdo" e até negando a sua existência. Assim, quando: 

[… um adulto se aproxima e diz que a ave é um canário cantando para outros canários ouvirem…]

o cantar passa de algo "consumatório" a ser sentido (um conteúdo) e transforma-se num recurso "instrumental" (uma forma-veículo) para ser usado como ponte para os conceitos "canário" e "canto-informação". Deste modo o "ver antigo" transforma-se em "ver conceptual".

PS - Talvez num exemplo mais corriqueiro e óbvio, é quando o "beijo consumatório" da despedida no namoro se transforma, mais tarde,  no "beijo instrumental" da despedida na rotina.
Esta perda de conteúdo pode ser embrulhada em frases rituais de emoção tipo "gosto muito de ti…" enquanto se ajeita o penteado ou se procuram as chaves, portanto, também as frases perdem o consumatório e passam a instrumental num ritual.
(Com filhos este esvaziamento "instrumental" também é vulgar).


Aplicando esta diferença à leitura

Uma simples experiência permite viver esta diferença em ler com ou sem "dreaming state" (posição de sonhador), onde o conteúdo é primordial e não a forma das palavras.

- Num expositor de venda de jornais e revistas, normalmente observam-se os seus títulos procurando palavras grandes e depois médias (ou vice versa) e abandonando as letras minúculas excepto se em imagens.
É um processo de controlo mental inconsciente, primordialmente centrado na forma das palavra e no seu impacto visual e só depois passará ao critério da preocupação com o seu conteúdo (significado).

Normalmente o intervalo de tempo entre estas duas etapas é grande se o leitor se aproximar do polo analfabeto ou se for numa língua que não domina e será pequeno se for um leitor treinado.
Porém qualquer que seja o caso, raramente a leitura das manchas de um jornal ou revista é feita na "posição de sonhador" (dreaming state), isto é, num estado apenas dominado pelo conteúdo (vide técnicas e estratégias de design de grafismo).

Em resumo, neste caso…vêm-se as palavras e depois pensa-se nos seus significados.

- Pelo contrário quando devido a diversos factores, em que os mais vulgares são o interesse do que se lê e o treino de ler na língua escrita, por ex. ler por "dreaming state" em português não significa poder fazê-lo em alemão ou vice versa, é possível adquirir condições para passar a um nível diferente de leitura que é:

em resumo, neste caso ...pensa-se e "mergulha-se" nos significados, não se vendo as palavras.

Quando isto acontece…entrou-se no "dreaming state" do leitor "inside in" (virado para dentro).

Uma vivência que muitos já sentiram, mesmo não sendo leitores profundos, é "mergulhar" de tal modo na história do livro que se "esquecem" de tudo que se passa à sua volta, inclusive o próprio livro, as páginas e as palavras lidas.

É vulgar quando "regressam à terra" admirarem-se com o tempo gasto, o número de páginas lidas e com o barulho que de repente sentem à volta.

Mesmo crianças, ainda leitores iniciais que se embrenham na leitura de uma história, podem entrar neste estado de "dreaming", sendo muito vulgar não ouvir a mãe ou o pai chamar, motivo porque depois eles se zangam com a sua falta de respeito em não responder, exigindo que tal não aconteça… não percebendo que acabam de estragar uma vivência importante do seu desenvolvimento como futuros leitores e estudantes eficazes.

Assim, existem duas alternativas:

1 - falta do "dreamig state" na leitura,
criando um processo dominado pela percepção do sinal gráfico "palavra" que, de forma secundária, trás "colado" a si um significado cognitivo-emocional. Este funcionamento é característico dos semi-analfabetos e semi-alfabetos e de quem aprende a ler numa língua desconhecida.

Segundo estudos feitos ( M. Zovko, M. Kiefer, etc) há uma dinâmica neural entre a percepção forma-conteudo, que se pode resumir dizendo que [...o foco na forma inibe a habilidade de determinar os significados que são a base da forma. O efeito ocorre a nível inconsciente, no controlar os canais sensoriais…]

Obs - English:  
[...focus on form inhibits the ability to determine the meanings that underlie form. The effect takes place at the unconscious level, at the level of sensory gating channels…]

2 - presença do "dreamig state" na leitura, 
criando um processo dominado pelos significados do sinal gráfico e à revelia da consciência do seu uso, dá-se um curto-circuito nos intermediários. 

O background do processo de ler (significados produzidos no córtex) tomou o controlo do resultado e colocou os intermediários (palavras escritas) fora das "portas da percepção". Vive-se uma espécie de estado de "sonambulismo" provocado pelo fluir de veículos "palavras" na mente em que [… o foco contínuo no significado das palavras treina a habilidade futura de determinar o significado, independentemente do meio utilizado. Entretanto, se o foco passar para a classificação das  palavras pela forma, a habilidade de determinar o conteudo reduz-se…]

Obs - English:
[...continued focus on the meaning of words enhances the future ability to determine meaning irrespective of the medium conveying it. However if the focus is shifted to classifying letters by shape the ability to determine meaning decreases…]


Como exemplo, alguns investigadores pediram a várias pessoas que identificassem numa lista quais as palavras referentes a um ser vivo e quais as referentes a uma coisa inanimada (árvore, pedra, bola, menina, planta). 
Verificaram que com a experiência as pessoas se tornavam subliminarmente mais activas para atender ao significado das palavras e mais rápidas a interpretar frases.

Por outro lado, se pediam que identificassem também numa série de palavras as que terminavam por vogal ou por consoante (jardim, garrafa, oceano, folha) tornavam-se subliminarmente mais activos para se concentrar nas formas das palavras e não nos seus significados inerentes, levando mais tempo a interpretar as frases lidas.

PS - A ser assim, para ajudar uma criança a interpretar uma frase, discutir se é substantivo ou adjectivo e qual é o tempo do verbo, talvez não seja um bom caminho, como também talvez seja um mau caminho.


Uma história

Um jovem de 12 anos não gostava de ler, quando lia vocalizava mentalmente as palavras para procurar depois o seu significado (estilo analfabeto), tinha grande dificuldade e lentidão em interpretar e quando acabava apresentava muitos erros. 

Na prática, ele na vida quase só vivia para o futebol, pensava futebol, sonhava futebol e coleccionava cadernetas com fotografias de jogadores pelo que, para o entusiasmar a ler, foi criado um "jogo de leitura" com futebol.

O objectivo do jogo era, na leitura, procurar tirá-lo da focagem na forma das palavras e substitui-la pela concentração no seu conteúdo, ou seja, neste jogo o importante de ler não era dizer as palavras escritas mas sim pensar-sentir o seu significado.

Dentro dos factores considerados relevantes para detonar o "dreaming state"na leitura, está a "intenção emotiva" colada e obtida com o resultado do ler, por ex., normalmente, a razão pessoal para se implicar na leitura está na intensidade de […querer saber o que acontece aos personagens…]. 

Assim, foram feitas várias listas com 50 nomes de jogadores e não-jogadores e o objectivo do jogo era ele conseguir, nos poucos segundos atribuídos (7, 5, 3 s), seleccionar o maior número de jogadores.

A dificuldade não estava na escolha a fazer (que ele conhecia bem) mas sim na rentabilidade da leitura nos poucos segundos atribuídos.
Por sua vez, o "fun" da actividade foi centrado na quantidade dos que tinha deixado de fora e não nos que tinha encontrado, ou seja, o critério era quantos menos jogadores deixados de fora, mais rápido tinha sido.

Rapidamente percebeu que não tinha tempo para vocalizar, por isso "treinou-se" em conseguir apenas com uma vista de olhos saber se "era ou não jogador".
Sem reparar deixou de fazer uma leitura apoiada nas sílabas das palavras para fazer uma leitura apoiada na palavra global, fase intermédia facilitadora do "dreaming state".

As listas forma-se complicando com critérios adicionais (jogadores estrangeiros-nacionais; com e sem castigos; etc) e ele, que não gostava de ler, divertia-se cada vez mais com o "jogo da leitura", de tal modo que se começou a fazer listas doutro tipo, por ex, cidades e vilas com e sem campos de futebol, etc…a imaginação era o limite.

O importante do jogo foi que para eleo ler tornou-se mais divertido do que encontrar respostas.
Sem o notar, tinha-se tornado um leitor, tinha passado a gostar de ler, ou seja, tinha adquirido o script "dreaming state" do leitor profissional… o futuro era dele.


A questão fundamental

O "dreaming state" é a etapa final do processo de aprender a ler ou é uma etapa inicial ????

[...every individual in every species have 
their own “default” setting in their .sensory gating channels…]
("Maturation of sensory gating performance in children with processing disorders", Davies, Chang, Gavin, )

Soldados com ESPT (Estado de Stress Pós-Traumático) têm sensibilidade "exageradamente intensificada" a certos sinais exteriores e hiper-focalização emocional em seus significados,  originando permanentes estados de alerta e de resposta a situações de possível agressão. 

As suas "portas de percepção" estão muitos abertas a pequenos sons, movimentos e diferenças desprezáveis, normalmente na vida normal excluídos da consciência, para pesquisar perigos potenciais. 

Segundo estudos efectuados se este estado persistir mais de 2 anos pode tornar-se uma "modificação duradoura da personalidade".
(vide Organização Mundial de Saúde, Transtornos Mentais e Comportamentais)

A conclusão a tirar é que tudo se passa em scripts e templates neurais por relação experiencial com situações contextuais que […abre ou fecha funcionalmente as "portas de percepção"…]. 

O "dreaming state" do leitor implicado é uma "modificação duradoura da personalidade de leitura" obtida por empolar a aprendizagem nos significados dos sinais o que vai abrir e fechar certos aspectos das "portas de percepção", diferentes das obtidas com a aprendizagem por empolamento da vocalização. 

Ou seja, aprender a ler, qualquer que seja o método, provoca sempre "modificações duradouras da personalidade", […aprender a ler não é uma simples destreza, é um re-nascer, é começar a ser e pensar diferente…].



Qualquer analfabeto que não lê letras, 
conhece o significado de símbolos visuais e sonoros.

Há métodos de alfabetização em que a palavra é apresentada como um sinal gráfico, um rabisco semelhante a um símbolo tipo emblema, por ex., quando se vê um grafismo-com-leão "lê-se" Sporting, mas se se vê um grafismo-com-águia lê-se Benfica. 

Portanto, se as palavras forem percepcionadas como grafismos ("desenhos de rabiscos") e atribuídos conteúdos, podem ser lidas frases com elas construídas sem usar processos de vocalização que se desconhecem:


percepcionadas como grafismos e não como símbolos de sons

Quando já se domina uma certa quantidade de símbolos gráficos e seus significados, fazendo a "leitura-compreensão" de seus conjuntos sem o uso de vocalização, é introduzida uma mudança qualitativa no script de leitura, pela apresentação do abecedário e da lógica de seus arranjos e combinações silábicas e fonéticas. 

Quer num método quer noutro, no final deve usar-se a leitura-formal e a leitura-significado, simplesmente na sua génese as etapas estão invertidas. No método da vocalização começa-se por usar o neo-cortex com a lógica silábica e às vezes nem saem dessa etapa e não gostam de ler, no método simbólico começa-se pelo significado com o sistema límbico a activar a emoção e só depois se passa à lógica silábica. 

É interessante notar que o método de alfabetização de Paulo Freire apesar de também começar por lógicas silábicas, todavia considera fundamental usar palavras bem inseridas "emotivamente" na cultura local, devendo nela ter importante e bem conhecido significado. Apesar de activar o neo-cortex, ele pretende também activar o sistema límbico dos significados pela sua conexão emotiva.

Como conclusão

e respondendo à questão colocada, o "dreaming state" da leitura não é uma consequência obtida apenas pela sobrecarga de se ler muito, pois o principal factor não é a "quantidade de acções de ler" mas sim a "qualidade das acções de ler", se bem que o aumento quantitativo em condições favoráveis possa ocasionar a mudança qualitativa.

Do mesmo modo, a compreensão do texto não está na razão directa das vezes em que é lido nem da performance do conhecimento da gramática pois os analfabetos, sem precisar de repetições, percebem  as conversas que têm e nem sabem a gramática das frases que ouvem

Compreender um texto e gostar de ler é um problema de operacionalidade em:

1º) - ter o script de como gerir significados; 
2º) - saber utilizá-lo.

Conselhos do Homengarbo (Dr.)
Por analogia, não é por empanturrar o filho de comida que ele fica bem alimentado, pois a quantidade resolve a angústia de quem quer solucionar mas não resolve o problema de quem o tem.

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