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quarta-feira, 13 de maio de 2020

Agora vou alugar as facas…

Um recuerdo encontrado em fichas antigas (anos 70/80)…

No fim dos anos setenta, era responsável pela gestão provisional dos recursos humanos da Lisnave (cerca de 10.000 empregados) passando muito tempo em reuniões, conversas informais, comentários avulsos, etc, com empregados, grupos, comissões, representantes, delegados, etc. 

Mais tarde, fui requisitado a tempo integral por alguns Ministérios como consultor de recursos humanos e formação. Quando estava no Ministério da Reforma Administrativa, fiquei “temporariamente”  a funcionar num prédio antigo algures na “velha” zona de Santos/C.Sodré. 

Sendo "fan", a meio da manhã pelas 11:30, de um café-duplo-e-bolo tornei-me cliente habitual de uma pequena pastelaria de bairro, "familiar" e gerida por marido e mulher, que na prática era um ponto de encontro dos “vizinhos” daquela área.

Era uma pausa agradável com conversas individuais partilhadas em grupo num ambiente informal. Não havia mesas nem cadeiras, todos ficavam mais ou menos acomodados ao balcão. Eu acabei por ser uma espécie de “estrangeiro” aceite no grupo de clientes habituais e assistindo às suas conversas "pessoais" na "teia da internet" oral da vizinhança.

Na verdade, ao fim de alguns dias já me sentia incluído, relaxado e disponível, participando como ouvinte activo naquele "ameaço pré-Net" de internet social ao estilo "boca-a-orelhas". 

Interessado, procurava descobrir se, na verdade, era uma rede saudável de relações de vizinhança ou uma espécie de “Big Brother” negativo e artesanal da vida do bairro. 
Na prática não sentia que fosse um tipo de "bisbilhotices de aldeia" de coscuvilhices ácidas e críticas, mas sim, uma troca de "news" (notícias novas) inter-amigos e enriquecedora das relações, bem afastada do estilo "pasquim" de tabeloides jornaleiros e televisivos.

Como sociólogo e “pesquisador” de grupos, ficava espantado como estas “conversas privadas” passeavam pelo ar. 

Obrigado profissionalmente, e habituado, a captar os sociogramas grupais, isto é, a vida imersa das redes afectivas grupais*, o ouvir este “saltitar” natural de comentários e opiniões, numa internet aberta, presencial e oral, era uma experiência nova.

*- Qualquer organização (ou grupo informal) tem sempre três planos de análise, Organograma: relações de poder formais e informais, isto é, quem depende de quem, Funciograma: relações input-output, isto é, quem faz o quê para quem, Sociograma: relações afectivas, isto é, quem se conecta positiva ou negativamente com quem.

Gerir uma simples reunião (seja coordenador ou simples assistente) obriga a gerir os três planos, podendo ser feito por três assistentes em equipa, um Interfere (age), outro Regista e outro Observa.
Por experiência pessoal, um simples assistente com uma boa equipa pode ser mais eficaz para gerir a obtenção de objectivo pré-determinado (não me refiro ao objectivo oficial) do que o gestor instituído.
Por exemplo, o objectivo oficial (gestor instituído): definir data tem como objectivo real (assistente inserido) o atrasar 15 dias essa marcação. 
Conclusão, o falhanço do gestor instituído fazer o objectivo oficial é na sua vitória em auxiliar o assistente inserido a realizar o objectivo real.
(Ver Manuais de Condução Estratégica de Reuniões)

Normalmente, nas reuniões, nas conversas informais ou comentários saltitantes em corredores, refeitórios, transportes, etc, se, por acaso, "caçava" alguma "dica" importante, tinha o hábito de NUNCA escrever registos mas apenas memorizar,
por isso, trazia sempre comigo uma carteira de fichas-post it’s (que ainda hoje uso) para registar a "dica" na primeira oportunidade. Se ela era longa e fundamental... então, uma ida ao WC resolvia a questão*.

*- Se almoçar (ou acompanhar) ministros, administradores, adversários, etc, nunca convém (😇😇) simultaneamente, escrever e comer (ou acompanhar). Se em reuniões, um profissional não regista as "dicas" no momento em que surgem mas sim tempos depois para não informar que isso foi importante.

Ao fim de algumas semanas de cliente da pastelaria, já em conversa com o dono, curioso, perguntei-lhe porque me tratava por “chefe”. Atrapalhado, perguntou se me ofendia, respondi que não mas gostava de saber porquê.
Respondeu-me que, como trabalhava para o Estado e aparecia para beber café dentro do horário de trabalho, devia ser chefe. Eu fiquei de “boca aberta” pois não me sentia tão "transparente" e pensei “tenho que escrever isto, estes “Big Brothers” funcionam bem”.

Mas ele continuou: “…e como dantes era chefe na Lisnave!!!”. Agora, a minha boca aberta já não se fechou, mas mesmo assim consegui perguntar como sabia.
- “Foi o Zé, que mora ali na travessa, que me disse”, respondeu ele e continuou, “…ele é comunista, trabalhou na Lisnave e viu-o em reuniões,… disse que era OK”.

Agora, para tirar notas quase que fui ao WC, mas não o fiz, todavia à saída encostei-me a um candeeiro e escrevi 2/3 post it's, principalmente sobre a pesquisa que devia fazer na Direcção Geral onde estava agora. 
Realmente estes “Big Brothers” artesanais funcionavam bem e, tempo depois, tive a prova real numa outra experiência.

Numa manhã entrou uma vizinha com a filha, o dono cumprimentou-as e deu os parabéns a ela e à filha pelo netinho que ia nascer. 
Agora fomos três a ficar de “boca aberta”... não se notava nada. A filha muito encarnada calou-se mas a mãe perguntou como sabia.

Então, ele e a mulher, brincando pois conheciam-na de miúda, quiseram primeiro dar-lhe um beijinho de parabéns e depois explicaram.
Tempos atrás, o avô conversando com amigos disse que gostaria muito de ter um neto e até daria uma festa só com a notícia.

Ora o Manel, dono do talho, há alguns dias atrás dissera que o avô fora ao talho comprar carne mas não quisera o habitual, mas sim mais quantidade e melhor por causa de uma jantarada de família.
A conclusão era óbvia, devia ser sobre o “neto a chegar”. 

Elas riram, confirmaram e, então, receberam parabéns de outros clientes e alguns até com um beijinho porque a "...conheciam desde miúda".

Espantado pensei que parecia uma familia alargada a festejar porque, depois delas sairem, a "festa" continuou. Comparei isto com familias reais onde depois da atitude de "alegria e parabéns", em poucos segundos, essa máscara cai e surge a máscara do "está dito e adeus". 

Ás vezes entretenho-me a medir quantos segundos levam a desaparecer os sorrisos e a alegria expressos e a ficar a cara verdadeira do "estou-me nas tintas"... por vezes isso é instantâneo. 

Como aprendi na cultura africana, o rir e a alegria estão no corpo todo e nunca desaparecem de repente, vão desaparecendo. Na cultura europeia ri-se com os músculos zigomáticos da cara, ao estilo liga-desliga do vendedor, e o corpo fica ausente da emoção.

Pensando sobre isto escrevi alguns post it's. Conclui que há diferenças entre “Big Brother” e “Brother BIG”.
O grupo da pastelaria tinha uma rede de relações-informações a circular entre todos ao estilo "família alargada", criando assim uma rede dominada por um NÓS que todos compartilhavam*, e transformavam um possível “Big Brother” em um real “Brother BIG”.

*- Tecnicamente, e sociologicamente, não convém confundir partilhar e compartilhar. O compartilhar contém o partilhar mas o partilhar não contém o compartilhar.
Se tenho um bolo posso partilhá-lo em pedaços iguais (ou diferentes) por três pessoas, mas se tenho um bolo, eu e três pessoas podemos compartilhá-lo em pedaços iguais (ou diferentes), ou seja, compartilhar significa que todos ficaram a usufruir da nova situação.

Segundo M. P. Follett, o compartilhar fica com a lei da situação a dominar todos os intervenientes. Dar esmola é partilhar dinheiro com o estilo “toma lá e ADEUS” pois quem dá e quem recebe não  ficam a usufruir a mesma situação.  
Dar dinheiro ao filho para comer gelado é partilhar dinheiro, mas ir comer gelados com o filho é compartilhar dinheiro.

Talvez uma história de “Brother Big” !!

Noutra manhã entrou um “estrangeiro”... mas desconhecido. 
Aproximou-se do balcão, pediu duas carcassas embrulhadas e, também embrulhados, 10 g de fiambre e 10 g de queijo flamengo. Quando tudo foi entregue, pediu um copo de água e perguntou quanto era, pagou.

Depois, pediu uma faca emprestada e lentamente tirou uma carcassa do embrulho e cortou-a ao meio, desembrulhou o fiambre e o queijo, colocou alguns bocados de cada um na carcassa já cortada e começou a comer a sandes-mista feita.

Na pastelaria as conversas pararam, o dono apoiou os cotovelos no balcão, pôs o queixo nas mãos e ficou a observar. Ninguém falava, todos olhavam cliente e dono.
Passados alguns minutos, acabou de comer, bebeu água, agradeceu, deu “Bons Dias” e foi-se embora.

No meio do silêncio criado, todos olhávamos o dono, esperando. Finalmente ele disse “Da próxima vez alugo a faca…” e começou a arrumar as chávenas de café, a mulher foi lá para dentro e os clientes habituais foram saindo...  eu também.

Curioso… fiquei nas redondezas mas nada aconteceu, quando entrou um cliente tudo ficou normal, por isso regressei ao trabalho pensando "...raisupartiça que tinha acontecido??? 
O que me espantou foi a reacção grupal, parecia sincronia de militares treinados.

Durantes dias andei à caça de migalhas informativas de um eventual "evento ou trauma" de conhecimento grupal que justificasse esta sintonia de comportamentos e atitudes do tipo "nada aconteceu" e "nada há para falar" quando era habitual conversar sobre as "coisas" que sucediam.

Posteriormente, fiquei à espera de conversas ou comentários sobre o assunto, mas tal não aconteceu e nunca me atrevi a lançar o tema.

Se tivesse que fazer uma reunião com uma comissão de moradores daquela área, era fundamental obter previamente esta informação, saber o máximo sobre os sociogramas existentes é indispensável. 
A raiz da atitude daquela comunidade “natural” devia ser uma raiz estruturante da teia “amigos de peito” (ver Prof Jorge Dias) que era tão comum no passado em Portugal, raiz essa assumida e nunca expressa nem ensinada mas aprendida por “respiração cultural".

Nunca consegui descobrir "o porquê" e acabei por passar para a DGAP no edifício da Av. 24 Julho e tudo ficou resumido a um recuerdo de... "Agora vou alugar facas..."

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