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quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Falar e Conversar

Como ponto de partida:

- "Olá Julieta", fala o computador e a Julieta activa o neocortex e compreende;
- "Olá Julieta", conversa o Romeu e a Julieta activa neocortex e sistema limbico, compreende e emociona-se.

A  -  Falar é um diálogo de troca de dados ao estilo Google.
Um diz "Em que ano nasceu D.Afonso Henriques" e o outro diz "1.109". Nenhum está implicado ou talvez apenas um esteja mas não há transação emocional.

Como exemplo, passeando o meu cão no bairro encontro um vizinho que diz "Bom dia, como está?" e eu complemento "Bom Dia, ...normal, o costume" é o chamado ritual Google do "Olá e Adeus". 

Um dia resolvi não seguir o ritual, fazer conversa e acrescentei "Bom Dia, não muito bem e o médico não resolve", rapidamente tive a resposta "As melhoras... tenho que ir à farmácia", ou seja "Olá e Adeus".

Não estou a criticar, eu faço o mesmo, são os rituais neutros da actual vida social, para falar com as pessoas é preciso não ter qualquer implicação emocional, ser tipo google, isto é, o estilo aldeia não funciona na cidade. 
Lá, numa rua de 20 metros com 10 vizinhos, conversando 5 minutos "afectivos" com cada um leva-se 50 minutos para chegar ao fim.

Porém, o ritmo da cidade não permite, mata a conversa e impõe "cegueira social" ou falar sem implicação afectiva. Sair do Metro e dar Bom Dia a todo o vivente por quem passa ou não chega ao trabalho ou é levado para o hospital psiquiátrico ou esquadra da Policia  por assédio.

Este predomínio do falar sobre o conversar transforma as relações quotidianas de humanas em mecânicas e  diz-se "se faz favor" em estilo bofetada, robot, carente e raramente relacional (no video a seguir: ouvir o please relacional).

O meu computador fala comigo e eu oiço, pois avisa-me da chegada de emails, do fim de downloads, se foi ou não com sucesso, de eventual avaria e até de possível solução, porém NUNCA HÁ CONVERSA.

Pelo contrário, às vezes com o meu cão HÁ CONVERSA.  Ele, por sinais, diz-me que precisa ir à rua e se está aflito ou não (transação emocional), eu recebo e respondo com rapidez ou lentidão... entendemo-nos.

No "falar" o traço emocional pode ser "sugerido" pelo outro, intencional ou inconscientemente.

Por exemplo, o telemarketing. Considerando que se me telefonam e me usam como material para fazer vendas eu posso usá-los como material para experiências falatórias, atendendo a que pagam a chamada.

Quando recebo estas chamadas com o habitual protocolo de venda "Bom dia, como está?", estilo computador, às vezes respondo "Não muito bem, as dores não passam!" com a entoação carente de quem espera resposta
Em 99% dos casos obtenho um silêncio mais ou menos prolongado seguido de alternativas, das quais costumo fazer listagem. 

É vulgar, mas não muito comum, o telefone desligar, pelo que deduzo que foi consultar o manual. Mais vulgar é um discreto sussurrar do tipo "Não sou médico(a)" o que me permite iniciar a saída do ritual estereotipado introduzindo laivos emotivos.

Há quatro caminhos possíveis. Um, é prolongar o quid pro quo perguntando admirado "Não é o Dr. Silva Ambrósio?" e em função da resposta decidir a continuação.
Outro é atacar (porque me telefona?) forçando uma explicação e alterando a posições top-down. A terceira é facilitar o trabalho de marketing com a posição submissa de defesa  (peço desculpa!),

Por fim a minha preferida que é manter a situação e forçar o outro a definir o caminho futuro (é pena, isto dói...) e esperar o que se segue. Esta é do estilo da que na giria se chama a posição jesuíta ou a negação dialéctica, isto é, obrigar o outro a mover-se, uma espécie de doce amargo ou na cultura chinesa Kong An:

- Meu padre, porque dizem que os jesuítas a uma pergunta respondem com outra pergunta?
- Meu filho, porque não há-de ser assim?
ou
- Não tem razão, não há dúvida que os carros alemães são os melhores!
- Tem razão, eles têm aspectos muito bons!

Ps - Estatisticamente homens e mulheres integram~se em padrões diferentes (frases, palavras, entoações, intensidades, silêncios, etc) para além de nuances pessoais. 

B -  Conversar é um diálogo em que os dados (palavras, gestos) trazem rastos pessoais (slices) (vestígios, pedaços, implicações) de quem fala, o que não acontece no estilo neutro, dito Google. No conversar, cada frase traz um pedaço do outro que é também comunicado. Como exemplo:

Um pai vai buscar o filho (5 anos) à escola e no caminho pergunta "Hoje, o que te aconteceu de bom?", ele fica pensativo e responde "Ri-me". Esta resposta traz consigo muitos rastos pessoais não só dele como da sua relação com o pai. 

Se fosse um estranho, distante e detestado talvez tivesse uma forma Google do "Olá e Adeus", isto é,  podia dizer "o costume", "as aulas", "tudo", etc, ou até talvez "rir"
Simplesmente "Ri-me" implica um desnudar pessoal, a entrega de uma intimidade, uma vivência pessoal, ou seja, ele não está falando com o pai, ele está conversando com o pai, expondo-se o que naturalmente* não faz com um estranho.

* - O "naturalmente" é aqui um conceito importante. À nascença algumas aptidões estão instaladas, entre elas o aprender e a empatia. Por exemplo, assim que nasce a primeira actividade do bebé é aprender e se não o faz morre. Refiro-me a aprender a respirar cá fora. 
A empatia (versão simpatia e antipatia) é semelhante ao aprender. Todos temos essas aptidões (são "ferramentas" de sobrevivência), mas em alguns casos foram bloqueadas e definhadas.
Paradoxalmente, a sociedade depois de ter estragado fala em ensinar. O problema da empatia e do aprender tens duas vertentes, potenciar o que existe e não estragar o que existe. 
Pessoalmente durante anos ensinei jovens a estudar, ou seja, a aprender por si, e sempre tive a sensação que não ensinava nada novo apenas redescobriam o que já sabiam fazer: aprender. 
Uma jovem de 11 anos que não gostava e não queria estudar, um dia depois de sozinha fazer um "estudo" de matemática bem feito, disse-me espantada: "Mas é só isto, mas isto é giro".

Esta jovem nesse ano passaria a todas excepto a Matemática. Simplesmente por ironia do destino nesse ano o Ministério decidiu exame para todos. Depois a mãe visitou-me e contou-me que no fim de semana ela não quis estudar pois já tinha "chumbado" e na 2ªfeira fez o exame... e PASSOU. 
Ao nosso lado, ela ria, dançava e cantava "... e não copiei". Isto não era o neocortex a manifestar-se, era o sistema limbico a festejar o sentir-se  PESSOA e o ter tido sucesso era apenas um "acidente" no quotidiano.

Em muitos casamentos já perto do divórcio, a queixa normal é "ele(a) não fala comigo". Porém se  durante horas cada um falar com o outro ao estilo de relatório, este falatório não só não impede como o acelera o divórcio.
Eles não precisam de falar um com o outro, eles precisam é de conversar um com o outro.

Ir jantar fora para falar (relatar factos bons ou maus) ao outro não resolve a relação, porém, se fechados na despensa, conversarem com traços afectivos (slices) talvez abra caminhos de solução, não só pelos conteúdos mas principalmente pela forma.

Outra queixa no divórcio é o outro não contar segredos, mas se ele(a) contar segredos ao colega isso não origina casamento entre eles, mesmo que sejam de sexos opostos. Não é aqui que está o problema.

O problema está na diferença entre FALAR (trocar palavras e gestos) sem transações afecto-emotivas e CONVERSAR (trocar palavras e gestos) com transações afecto-emotivas.

Nesta diferença a palavra chave é transação, isto é, ambos podem estar cheios de emotividade, por ex, um de raiva e o outro de medo, mas elas não se acolhem e encaixam... é preciso que a emotividade de um seja recebida (empatia, simpatia, antipatia) pelo outro, acolhida, assimilada e respondida positiva ou negativa. 

Conversar significa mútua transação do neocortex e sistema límbico, informações e emoções que saltam de um para outro, é [...uma espécie de música que ambos partilham e dançam].

No video a seguir, há um falar que se transforma em conversar e como é filme tudo acaba em bem.
O começo é um falar (neocórtex) que "pede" a entrada do límbico (que é aceite), repare-se no "please" com seu formato para o límbico e seu conteúdo para o neocortex.
Depois, ambos activos processam trocas mútuas com conversa:


Este jogo do entrelaçar neocortex e límbico pode ser "natural" ou "proposto".

1  -  Por "natural"
refere-se ao modo instintivo de estar na situação, um pouco estilo existencialista do "homem e sua circunstância" ou, para não ofender a igualdade de género, refraseando "humanos e sua circunstância".

Sob o ponto de vista pedagógico, e não entrando nos conceitos psy, prefiro substituir o conceito de circunstância, demasiado aleatório para o meu gosto, pelo conceito e métodos da "Lei da situação" (M. P. Follett).
Quer isto dizer que na relação ensino-aprendizagem prefiro alterar a situação proposta para favorecer potencialidades de outros comportamentos, deixando e solicitando o uso de liberdade de decisão. Eventual fornecimento de informação é no sentido de clarificar variáveis existentes e não pressionar orientação.

Matematicamente pode-se expressar dizendo C=f(P,M), isto é, homem e sua circunstância ou comportamento(C) é função da pessoa(P) e do meio(M), ou seja, em vez de alterar comportamentos mudando a pessoa (remédios??) opta-se por a pessoa ficar intocável e alterar-se a situação. Passa-se de metodologia psicológica para metodologia sociológica.

Como exemplo, estão as situações de namoro adolescente em que a pressão hormonal activa empatias existentes (o psy) e o falar neutro passa naturalmente para longas conversas-de-namoro, um misto harmónico de neocortex e sistema límbico, quer por face-a-face, quer tele (telefone, internet), quer por carta e as vezes por mensageiro.
Ps - Neste exemplo, estou a excluir o caso de ser uma cultura-de-engate que neste caso em vez de "natural" passa a "proposto".

2  -  Por "proposto"
refere-se ao modo de tentar criar conversas por meio de situações susceptíveis de as provocar, gerindo  Leis da Situação (variáveis existentes ou introduzidas)*. Há vários métodos desde um-a-um, um-a-muitos e muitos-a-muitos.

*- Tradicionalmente, no namoro, o velho convite de ir ouvir os discos novos que tem em casa.

Por experiência pessoal quando a lei da situação usada é harmónica com o grupo o problema não é começar... é terminar a conversa:

Um dia de "Conversa" de técnicos e chefias autárquicos,
em que ao almoço a "conversa" continuava
A base destes métodos é sempre a relação um-a-um, cujo ponto crítico é a forma de colocar questões, em simplex, a "pergunta" proponente da conversa.

Pessoalmente, quando ensinava a estudar e antes de começar tinha sempre uma "conversa" (cerca de 2 horas) só com o jovem não era para investigação mas para nos conhecermos ou, principalmente, para ele sentir onde se ia meter e me avaliar.

No fim pedia-lhe para pensar e dizer ao pais se queria começar e pedir-lhes para me telefonar a resposta e só então eu decidiria. Obrigado ou não, ele agora sabia que eu queria a decisão dele, mesmo que apenas obedecesse.
Mais tarde, era sempre possível entre a mensagem recebida, o seu conteúdo e a posição dele nas sessões, configurar a rede família (sociometria) entre a mensagem, pais, ele e relações.
O que estava em causa era o design de transações e empatias relacionais*.

*- Aprendi com o Prof. Dr. João dos Santos (CSMIL-Centro Saúde Mental Infantil de Lisboa) quando dizia que, se há antipatia na relação, ensinar/ajudar torna-se difícil.

Há algumas regras a ter em atenção, mas a base é a mesma: a resposta tem sempre que dar trabalho a decidir para responder. Esta conversa não pode ter o modelo do interrogatório judicial "Sim-Não".

Convém não fazer perguntas abstractas, indefinidas e amplas do tipo "Como vai a escola (a vida?, o trabalho?,etc)", pois normalmente a resposta é do tipo "Olá e adeus" para despachar. Este falar não produz conversar.
Convém ter um frasear que torne a resposta "Sim-Não" impossível e obrigue a formulação, portanto, implicação pessoal.

Como exemplo já atrás citado: "Hoje, o que te aconteceu de bom?". Se a resposta for de "fuga", com o  estilo "tudo normal", "tudo bom", etc,  a conclusão é que o outro não está em clima (in the mood) de conversa ou pelo tema ou pela relação.

Também não convém fazer perguntas sobre "fraquezas" ou "auto-criticas" do tipo "Qual a disciplina (a função?, a tarefa?, etc)... mais difícil?".
É preferível pedir uma avaliação sobre si próprio com um dilema a decidir "Penso ajudar (explicar?, dar?, etc) em... ou em... qual será melhor?".

Conversar é fácil, às vezes o difícil é não o matar à nascença!

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