Translate

terça-feira, 3 de junho de 2014

As portas da percepção


Desde os vírus e as bactérias ao ser humano os seres vivos não se comem a si próprios…sabem qual é a fronteira entre "o-que-é-ele" e "o que não-é-ele"
O bebé por muito recém nascido que seja "sabe" a diferença entre si o o exterior.

Por outras palavras, todo o ser vivo "sabe" que ele não é o contexto e esta "sabedoria" é uma condição essencial  de sobrevivência, pois é do contexto que retira recursos de sobrevivência. Não existe nenhum ser vivo que tenha a totalidade dos recursos de sobrevivência dentro de si próprio, ou numa linguagem existencialista, todo o ser vivo existe em contexto.

Mesmo para um novo ser ainda dentro do corpo da mãe…ela é o seu contexto se bem que a ela ligado por "cabo" e com uma consciência nebulosa da sua fronteira.

Porém assim que nasce, segundos depois, aprende a respirar, isto é, "aprende" que existe um exterior fora dele de onde retira um recurso fundamental que começa logo a usar, confirmando…[…eu-sou-eu e o ar que está lá fora não-sou-eu…].

PS - Nunca percebi porque é que é preciso bater no recém nascido para ele respirar e sobreviver…, porque nenhum outro animal bate/morde nos filhos, à nascença, para eles sobreviverem, só o animal humano. 
O espantoso é que, nesta espécie, este hábito continua ao longo da vida para ajudar os filhos a viver melhor.





Pensar é relacionar o irrelacionado...




Se se relacionar este conceito de fronteira física "eu-contexto"com o conceito "consciência de si", verifica-se que esta implica também uma fronteira entre "consciência-de-si" e "consciência de não-si".

Huhau...então a consciência (primária ou evoluída) não é uma exclusividade humana é uma constante dos seres vivos, pois todos eles têm noção do que é "ser-eles" e do que é "não-ser-eles".

Se a consciência de um vírus pode ser primária e a consciência do ser humano pode ser evoluída, a consciência dos animais estará mais perto da nossa espécie do que da espécie dos micróbios.

Sinto-me como se estivesse na época do Galileu quando para a espécie humana a Terra deixou de ser plana para ser esférica…apenas agora a diferença é que a consciência deixou de ser só humana para ser uma característica dos seres vivos.

Se o século XX foi o século da ruptura com os paradigmas da Física, possivelmente o século XXI é o século de ruptura com os paradigmas da Biologia.

Como diz Einstein (parafraseando):
[… a solução de um problema tem que partir de paradigmas diferentes 
dos paradigmas que criaram o problema…]
então, talvez o paradigma da consciência ser uma característica inerente a todos os animais seja uma mutação civilizacional tão grande e profunda com foi o fim da época de Potolomeu com o seu paradigma da Terra plana e talvez seja este novo paradigma que possibilita soluções para os problemas actuais.

No plano da neurociência, um novo paradigma obriga a uma nova percepção dos fenómenos, ou seja, há sinais que não se recebiam (eram bloqueados) e se têm que passar a receber (abrir as portas da sua percepção)…assim,

….. um cão, um gato, uma boi têm consciência ?

Não sei, mas para o saber teremos que receber os sinais que eles enviam, não lhes estar bloqueados, vê-los com umas "portas de percepção mais abertas".

Assim surge um "pequeno problema". 

Numa sociedade, qualquer poder vigente controla sempre a abertura permitida e legal para as portas de percepção
Se são maiores que o autorizado o indivíduo passa a ser um anormal ou pelo menos a ser um desviante perigoso, eventualmente carimbado de esquizofrénico que é uma espécie de saco sem fundo onde cabe tudo o que não entra noutros lados.
Esta maior abertura é apenas consentida em desviantes dentro da normalidade, como por exemplo, artistas ou cientistas loucos.

Por exemplo, a sociedade esclavagista, onde os negros eram o "ouro negro" da economia, garantia que [...eles não tinham alma…], entenda-se […eles não tinham consciência, pois eram semelhantes aos animais…] e quem os tratava como "seres de consciência" tinha que o fazer clandestinamente e eventualmente iriam sofrer perseguições.

Talvez seja interessante pensar um pouco sobre as verdades vigentes e credíveis de consciência e inteligência.

Se se reparar todo o ser vivo, dos vírus aos humanos, consegue identificar o contexto, dele receber dados, processá-los em informação e assim sobreviver.

Para este processo acontecer, todo o ser vivo precisa de:

1 - ter uma percepção de si e de não-si;
2 - ter um interface para contacto e recepção de sinais exteriores (membrana nos vírus, sentidos, etc);
3 - dar um significado ao sinal recebido em ser útil ou não-útil;
4 - inferir uma intenção à fonte do sinal em ser perigo ou não-perigo;
5 - originar uma alternativa de resposta por ser activo ou não-activo;

quer o processo aconteça num vírus perante um glóbulo branco, ou uma lula perante um peixe (alimento ou inimigo?), um cão perante um gato (fujo? ataco? convivo?) ou um humano perante outro humano.

Deixemo-nos de preciosismos linguísticos, filosóficos ou conceptuais, um "orgão de locomoção" é um orgão de locomoção quer seja uma perna no homem, uma pata na mosca ou um pseudopodo numa amiba e servem sempre para andar no contexto à procura de sinais para escolher o que fará.

Em conclusão, aquele processo em 5 etapas significa consciência & inteligência se define fronteiras entre si e o exterior, se recebe sinais do seu contexto, se lhes atribui significados, se faz pesquisa de intenções e se provoca alternativas de resposta, quer aconteça em humanos ou em extra-humanos… não vamos "fechar os olhos" e repetir as muralidades filosóficas da escravatura.


As "portas da percepção"


As "portas da percepção" são o controlo cultural e neural sobre a quantidade e qualidade dos sinais recebidos, isto é, dos estímulos que entram no córtex e que ele vai usar.

As crianças normalmente têm uma maior abertura nessas portas que, devido a diversos factores, se vai reduzindo com a idade. Porém por pressão doutros factores, essas portas podem aumentar a sua abertura normalmente em áreas específicas.
Como exemplo, os músicos, pois a música é o encontro complexo de inúmeras particularidades vibracionais que se entrechocam entre si.

Ouvir música é ouvir o resultado total do encontro dessas particularidades, mas tocar música é gerir a dança pormenorizada dessas particularidades entre si.

Um músico tem que ter as "portas de percepção vibracional" bem abertas para conseguir captar todos os sons que acontecem, como, onde, quando, porquê, com quê, o quê, e ser capaz de os gerir na sua especificidade… mas quem ouve só precisa ouvir o resultado global do seu conjunto e talvez apreciar um ou outro pormenor.

Num plano técnico,

na música, os sons têm muitos factores de variabilidade, a melodia (a disposição sucessiva de sons), a harmonia (a disposição simultânea de sons), o ritmo (a ordem e proporção dos sons), cada um com sua altura (velocidade da vibração: agudo ou grave), a duração (tempo de emissão, cujas diferenças integradas provocam o ritmo), a intensidade (amplitude das vibrações) e o timbre (combinação de harmónicos no som principal).


Criar música é criar e integrar todos estes factores, tocar música é senti-los e activá-los no momento certo… Huau…Huau… as "portas de percepção às vibrações" precisam de estar bem abertas e operacionais em quem cria e toca música, pois é grande a quantidade, a qualidade e a complexidade das varáveis a integrar.

O interessante é que os animais são capazes de o fazer pois usam "música" para comunicar entre si.

Os shamanes aconselham a não se perder (ou re-aprender) a […ver e ouvir à antiga…sem intermediários…] e acrescentam […é preciso sentir o "pano de fundo" (background) do que se ouve ou vê…].

Levei algum tempo a compreender o que isto queria dizer e muito mais tempo a conseguir "ver/ouvir à antiga", até descobrir que o truque é apenas precisar primeiro ter que "abrir portas da percepção".


Abrir as "portas da percepção"

Quando uma criança ouve uma ave cantar, ouve o seu contentamento, a sua alegria no viver, a sua vibração feliz… e segundo o shaman está a ouvir sem intemediários, directamente do "background" da música da ave.

PS - Muitas vezes quando de repente se ouve uma melodia que nos toca mas não se identifica qual é, estamos a "ouvir à antiga". 
Em muitos relatos de "viagens de drogados" quando eles contam o que vêm e ouvem, é como se estivessem a "ver e ouvir à antiga", sem intermediários, com portas de percepção muito abertas (que aliás é um dos efeitos das drogas).

Regressando à criança e ao canto da ave, se de repente um adulto se aproximar e lhe disser que a ave é um canário e que canta para outros canários ouvirem, a criança passou a ouvir o canto da ave com um intermediário que é o conceito "canário" e o conceito "falar com…".
Este ensino acabou de fechar as portas da percepção aos sinais de alegria e á vibração feliz trazida com o canto, o córtex pré frontal controla o processo, o sistema límbico saiu de jogo.

PS - Em lugares públicos é vulgar assistir à "cegueira" (signal blindness) dos pais à alegria da criança quando mostra o pássaro que saltita por ali e "saindo pela tangente" (fogem para um desvio) respondem com a informação "é um pardal" e acrescentam um carinhoso cuidado policial com a ordem "sai daí que te sujas".

Uma experiência possível no uso de intermediários, é passar por uma banca de jornais e ver as palavras dos títulos e pensar nos significados.
Mas se emocionados com a leitura de um romance se perde a consciência das palavras das páginas e apenas se vive as ideias da história, é uma experiência de não-uso de intermediários.  O background (os significados) tomou o total controlo do resultado e colocou os intermediários (as palavras escritas), fora das "portas da percepção".  Vive-se uma espécie de estado de sonho (dreaming state).

PS - O problema dos semi-alfabetos e dos jovens que "não gostam de ler" é que ainda não conseguem atingir este "estado de sonho" do leitor treinado.

Uma simples experiência de abertura e fechamento das "portas da percepção" é, por exemplo, sentar-se na mesa do café, fixar a vista e a atenção na chávena e procurar todos os seus pormenores. As "portas da percepção" fecham e tudo o resto desaparece do processamento do córtex.

Porém, se fixar um ponto no ar no meio da sala e mantiver o olhar simultaneamente em todo e em nenhum lugar (usando a visão periférica), criando um olhar típico de "soft peep" (espeitadela macia), mas ao mesmo tempo concentrar-se e fixar a atenção na chávena, as "portas da percepção" abrem-se e o córtex processa em simultâneo todos os sinais em jogo na sala e na chávena.

O interessante é que a rede de relações estabelecida deste modo entre os sinais recebidos é quase aleatória, isto é, torna-se independente de controlo voluntário e… vê-se o que não se esperava e não tinha visto.

Por experiência pessoal e há algum tempo atrás, fazendo esta experiência numa explanada, de repente a "zanga escondida e explosiva" vivida numa mesa afastada entre um pai, uma mãe e duas crianças pequenas foi para mim tão violenta e inesperada que me levantei e saí.

PS - Há já algum tempo que, quando estou em lugares públicos de lazer, tenho o hábito de pagar logo que me sento pois, se precisar, gosto de poder sair (ou melhor...fugir) de repente.




Pensar é encontrar o não-conhecido...
…no conhecido !



Voltei a reler um livro da minha adolescência, "Viagem à volta do meu quarto" de Xavier de Maistre (1798), que na época me fez muita confusão pois não percebia a proposta:  - "Viajar no que conheço bem ?? Para quê??".

Hoje, lendo a problemática das "portas da percepção" entendo melhor o ponto de vista de Xavier de Maistre ao considerar que "viajar é mais um ponto de vista do que um destino". 
Mas para mim, o problema continua... apenas mudou de roupagem: - "Ponto de vista de quê??"

Se a problemática das "portas da percepção" é que a diferença entre o conhecidodesconhecido está  em receber no córtex sinais diferentes do habitual e assim ver o que não tinha visto, então mudar o ponto-de-vista é apenas mudar os filtros com que se olha para o conhecido.

Por outras palavras, nós vemos sempre o real por pequenas fendas quase imutáveis ("narrow chinks of our cavern") que nos mostram apenas uma pequena parte do exterior, e que podem ser tituladas como "portas de percepção".

Segundo Arash Javanbakht (médico psiquiatra, Universidade de Michigan, USA):

[…num mundo onde somos bombardeados com grande quantidade de estimulação, aprendemos a concentrar a atenção nos estímulos importantes,  filtrando (gating) estímulos menos relevantes. 
Gating Sensorial (SG) é uma forma de habituação a estímulos repetitivos e sem importância para o cérebro, preservando recursos limitados para se concentrar em estímulos importantes que precisam de processamento o que é "decidido" em função do perfil pessoal pela experiência, escolaridade e habituação cultural existente...
…. também nos protege de sobrecarga sensorial na integridade cognitiva, susceptível de criar dificuldade em distinguir o eu do não-eu…]

Ou numa linguagem menos técnica, para "abrir as portas de percepção" é preciso fazer um "different gating" (bloquear diferentemente) sobre o conhecido, afinal, tudo se resume em treinar alargar os filtros com que excluímos sinais. 

Com um certo espanto, descubro que algumas actividades de treino no shamanismo se resumem a alargar a recepção dos sinais recebidos, fazendo […nascer o desconhecido no conhecido…], não só por ver sinais que não se viam, como por fazer configurações (estruturas) diferentes (i.é., outras significações) com eles.

Albert Hofmann: 
[...Suddenly, the familiar view of our surroundings is transformed in a strange, delightful, or alarming way: it appears to us in a new light, takes on special meaning. 
All of us have the capacity for a deeper kind of perception in a very different paradigm and perceptual experience…]

Por experiência pessoal como actor e como espectador, muitas vezes o prazer e a alegria de ver diferente é misturada com o susto e medo de tal ter acontecido, criando um cocktail de difícil digestão.
Nestes casos, penso que o melhor é seguir o conselho do shaman: -"…abrir os olhos e saltar…"


Como experiência - Ver outros sinais com outra estrutura, fazendo outras configurações:


Ver a mulher grávida lendo um livro




e ver o homem ????







Sem comentários:

Enviar um comentário