Este passeio pelas culturas tribais tem sido interessante.
O "manual universitário" de shamanismo do romeno Mircea Eliade (Shamanism: Archaic Techniques of Ecstasy) é um livro fundamental para uma tese universitária sobre a matéria, mas é espécie de doce-amargo, motivante e aborrecido, não conseguindo decidir se continuo ou desisto e me dedico a relatos de "antropólogos viajantes" bem mais atraentes.
Grande parte do livro é sobre a função shaman (como é chamada na tribo Evenki, Sibéria) e suas características na Asia Central, analisando também outras regiões do planeta.
Com ele, nasce o termo shamanismo na cultura ocidental:
de Dr. A. Hugentobler |
[…um shaman é reconhecido como sendo um médico que cura, um mágico que faz milagres, um sacerdote místico e poeta, um "guia de almas" que não julga mas ajuda nas transições..].
As práticas shamanicas existem em diversas culturas tribais para além da Sibéria e da Asia Central, tais como, índios Apaches, Sioux, Lakota, etc na América do Norte, Huichol e Toltec no México, Paqo no Peru, Aborígenes na Austrália, Shipibo na Amazónia, tribos da Oceânia, Tibet, China, povos germânicos e seu deus Odin, gregos e persas, etc.
O interessante nesta viagem não é descobrir diferenças, mas sim encontrar semelhanças nas crenças e técnicas operativas usadas, às vezes até reconhecendo práticas actuais de religiões e seitas religiosas pelo que, aproveitando boleia da moda de genes como causadores de comportamentos, apetece perguntar se teremos também algum gene shamanico clandestino e a funcionar "undercover".
as pinturas rupestres e as práticas shamanicas usam a chamada "arte e/ou mágica simpatética"(C. Begouen) baseada na [...relação ou identificação entre uma imagem e um conteúdo, antropomórfico ou não…] muito utilizada quer na primitiva preparação mágica para as caçadas quer, hoje, em templos e cerimónias religiosas e ainda na criação de climas terapêuticos, místicos e/ou protocolares, desde os emblemas clubistas na lapela e reverências a símbolos políticos, militares, desportivos,... até às velas acesas em casa a símbolos religiosos ou fotografias de lideres.
Qualquer templo religioso ocidental ou oriental, qualquer instituição política ou comercial, qualquer cerimónia desde religiosas a terapêuticas, familiares, burocráticas, desportivas, íntimas ou públicas usam "magias simpatéticas" através de símbolos, ícones, bandeiras, vestuário, adornos, tatuagens, gestos padronizados e cantos/frases ritualizadas…criando estados emotivos de choro e felicidade, catatonia e agitação, obediência e adesão, etc.
Aliança de casamento, um dos símbolos mais vulgarizados, indo de "prisão-posse" a "adesão-partilha" às vezes difícil distinguir o que está em uso. |
Numa palavra, os hábitos pré-históricos e shamanicos de viver crenças por processos mágicos através de símbolos perduram até aos dias de hoje, vide as claques de futebol, a comunidade de crentes, os comícios políticos, saldos comerciais de marcas, rituais sociais de estatuto, amorosos, familiares, etc.
O comércio de símbolos, respondendo à magia simpatética com origem na pré-história e perdurando até aos dias de hoje, é um negócio florescente de objectos religiosos, militares, laicos, amuletos e feitiços, muitas vezes entrelaçados entre si.
Noutro exemplo,
sobre o viver, na perspectiva shamanica das tribos índias da América do Norte (Sioux, Lakota, etc), surge que:
[… a vida são as marcas dos sonhos vividos nos relâmpagos do presente e deixados na memória do corpo como a passagem do futuro para o passado.]
Por outras palavras, vive-se no ano presente entre os anos passados e os anos futuros. Porém também é verdade que se vive no mês presente entre os meses passados e os meses futuros.
Continuando, vive-se o dia presente entre os dias passados e os dias futuros…até chegarmos ao presente segundo existente entre os segundos já vividos (passado) e os segundos a viver (futuro).
Uhau…o meu centésimo-milésimo-de-segundo que era futuro agora é presente e quando acabar de ler esta palavra já é passado. Então…
[… o Presente é um fugaz relâmpago entre o infinito do Passado na memória e o infinito do Futuro nos sonhos.]
ou seja, o Presente não existe é um Futuro que, assim que aparece, desaparece no Passado, ou como salienta a cultura shamanica […o viver é apenas fazer os sonhos (Futuro) se tornarem memória (Passado)], o que abre um mundo de interrogações sobre - "Então,…como se vive?"
Segundo os Lakota é preciso não se deixar apanhar pela Iktumi, a aranha traiçoeira.
A contínua passagem Futuro-Passado é feita pelas emoções criadas pelos sonhos e gravam a memória, ou seja, sem emoções não há vida e a morte é o fim das emoções. A ponte que liga o ANTES e o DEPOIS são as emoções.
O "guerreiro da vida" tem o seu foco nas emoções pelo que na cultura shamanica se encontram alguns métodos práticos e fáceis de usar para análise desse portal, tais como:
Técnica 1
A sua base é procurar a experiência havida e pensar sobre ela, com a crença de que experiência só existe quando é expressa em emoções, sem emoções nunca há experiência…há relatos.
Fase A:
1º - Procurar na memória um evento crítico vivido, problemático ou infeliz, e escrevê-lo ou gravá-lo ou contar a alguém, descrevendo-o com o maior número de detalhes possíveis mas sempre na perspectiva de uma marionette (vítima sofrendo interferências) manipulada por "ELES", os que fazem todas as decisões e acções sofridas, portanto, nunca utilizando o EU, por exemplo:
- "Ia no carro, houve um desastre, bateram e levaram-me para o hospital";
2º - Depois contar o mesmo evento mas na posição do "guerreiro da vida" (herói e não vítima), utilizando sempre o EU e nunca o sujeito indeterminado, por exemplo:
- "Eu guiava o carro, bati noutro e fiz um desastre, depois eu fui para o Hospital".
PS1 - Isto não significa assumir culpas, significa apenas contar a história a partir de si, porque se dois carros chocam cada um deles bateu no noutro, não é um problema de tribunal com culpa-castigo de origem do evento, é um problema de atitude-filtro de vida de posição perante o evento.
É interessante ver quantas vezes em cada hipótese se usa a posição da outra alternativa.
Por experiência pessoal, quando a posição normal na vida é de "vítima" ao fazer o relato de "herói" a maior parte das vezes usa-se a posição de vítima e vice-versa.
PS2 - Normalmente na posição de vítima há "amnésia das possibilidades e rigidez nos limites", não sendo uma atitude de "guerreiro da vida", e na posição de herói há "pesquisa de possibilidades e flexibilidade nos limites" sendo esta a atitude do "guerreiro da vida".
Fase B:
Em cada um dos relatos anterores fazer uma análise, começando do principio do relato, escrevendo ou re-escrevendo todas as emoções-sentires que recorda dessa altura:
2º - com isso senti isto: emoções-sentires
3º - fiz isto: acção-acto decidido e feito
…e assim sucessivamente...
4º - depois aconteceu….etc etc, até ao fim
Na prática, ficará uma lista de emoções-sentires tiradas dos dois relatos. O foco pretendido é apenas observar-analisar, nunca julgar ou imaginar consequências, decisões, acções.
No final desse passeio, analisar como se sente e quais as emoções agora dominantes.
Técnica 2
Este método foi vivido pessoalmente por mim, alguns anos atrás, num grupo de 20 pessoas de superficial conhecimento mútuo, num encontro de primavera nos Alpes italianos. Durou cerca de 4 horas, coordenado por uma "Medicine Woman" da cultura Sioux pelo que na, minha memória, a experiência sempre ficou conhecida como
Psicanálise Índia
1. No início foi distribuído a cada um de nós um A4 com um desenho (ver em baixo), uma estaca, uma corda com 5 metros com duas marcas a meio, e um rolo de fio com vários metros:
O esquema representava os pontos cardeais e colaterais, estando em cada ponto uma animal simbólico representativo (por ex. urso), uma cor e seu significado emotivo (tristeza, dor, raiva, alegria, etc).
A corda tinha 2 marcas, uma representando efeito mínimo e a outra efeito médio.
2. Todo o grupo foi para um prado na montanha, suficientemente grande para cabermos todos mas afastados 10/15 metros uns dos outros.
3. A primeira tarefa foi cada um encontrar um espaço onde se sentisse bem, considerando o terreno, o sol, o vento, etc e espetar a estaca no meio desse espaço, amarrando-lhe a corda e esticando-a para andar à roda, fazer um circulo e verificar se não interferiria com o circulo do vizinho.
Se tudo estivesse OK, colocar na estaca um pequeno cartão com um nome de código.
4. Depois, durante 10 minutos cada um foi procurar 4 pedras que gostasse e cuja cor, própria ou por colagem (musgo, terra, etc), se aproximasse das cores descritas no A4 e também 4 objectos (flores, ramos, etc).
5. Regressados ao local, a tarefa foi construir o circulo simbólico pessoal utilizando a corda amarrada à estaca, com a orientação geográfica correcta, isto é, a pedra-cor (e o animal) representante do Norte deveria estar na parte norte do circulo.
6. Tudo pronto, começou a pesquisa emocional.
A coordenadora e ajudantes ciclicamente distribuíam uns cartões com perguntas a que teríamos que responder (no máximo 5 minutos) e em função da nossa resposta emotiva a essa questão, escolher uma das 8 emoções listadas para cada ponto cardeal ou colateral …ir para lá.
Nessa posição e agarrando a corda ligada á estaca, escolher o ponto de intensidade da emoção. Se intensa ficar onde está, se média ir para a marca superior da corda, se mínima ir para a marca mais perto do centro.
PS - Como exemplo de uma questão:
"Pensar numa decisão-acção nossa no passado que ainda hoje, quando nos lembramos dela, temos uma cólica na barriga". Qual a emoção sentida hoje ?
Chegado ao ponto correspondente a essa emoção, fixar lá a ponta do rolo de fio e, depois, mantendo-o sempre connosco ir respondendo às questões seguintes sempre com o mesmo método, desenrolando o fio no terreno. Deste modo era desenhado no terreno o nosso caminho das emoções. Exemplo:
7. Depois de tudo acabado, foi feita a proposta de passearmos por todos os círculos e se encontrássemos um cujo desenho fosse muito parecido com o nosso, tomar nota do nome de código, juntar o nosso nome e entregar à coordenadora.
8. Quando duas pessoas mutuamente se escolhiam, constituíam um par para conversar livremente entre si.
No meu caso pessoal, eu e uma professora italiana escolhemo-nos mutuamente pelo que nos juntámos e começámos a conversar. Nunca tínhamos reparado um no outro, mas ao fim de 2 horas, já de noite e com frio, foram-nos chamar para jantar, pois a conversa fluía sem interrupção. Nunca mais a vi.
Quando depois do jantar contei isso à coordenadora e ela respondeu que era normal isso acontecer, pois quando há uma correspondência é sempre muito difícil acabar a conversa.
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