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quinta-feira, 25 de maio de 2017

Convivialidade e a "dança das mesas"


Hoje, como é hábito, tomei o pequeno almoço num café-pastelaria do bairro, bom café, bons bolos, bom pão e almoços rápidos. Os habituais clientes são vizinhos, reformados ou não, trabalhadores do hospital próximo ou veraneantes da praia ao lado que aqui se encontram e se relacionam ao estilo de passageiros habituais de metro ou de comboio.

O café tem dez mesas no interior e outras dez na esplanada, das quais os habituais clientes têm as suas preferidas e, na sua falta, as desconsoladamente usadas para tomar café, ler emails, facebook, jornais, revistas, livros ou conversar.

Hoje aconteceu algo inesperado que me fez olhar e pensar de modo diferente o quotidiano habitual.

Cheguei ao café ligeiramente à frente de uma cliente para o seu pequeno lanche, com um repousante intervalo a meio da manhã 
Quando entrei, só havia duas mesas, uma era semi-desconsolada e outra semi-preferida, pois ambas eram no meio da sala sem os confortáveis peitoris das janelas para pôr o livro, revistas, mala, tablet, etc, o que obrigava a usar cadeiras debaixo da mesa. 

A mesa semi-preferida seria a minha escolha, porém a cliente atrás de mim era lá que se costumava sentar, longe do caminho e com vista para o exterior, saboreando assim alguns minutos relaxantes. Se estava ocupada ia para o balcão, comia e ia-se embora.

Como costumo ficar no café cerca de uma hora, comendo, lendo e escrevendo, decidi deixar essa mesa para ela e sentar-me na outra, procurando mudar logo que vagasse alguma das preferidas.

O estranho é que essa cliente quando passou por mim, além dos costumados ligeiros "bons dias", disse-me claramente "obrigado".
Fiquei admirado e a pensar porquê. O que se tinha passado? Eu apenas me tinha sentado numa mesa.

Abri o tablet, fui comendo, pensando e listando "recuerdos" de situações nesses pequenos almoços.

Ao fim de algum tempo a conclusão foi interessante pois percebi que tenho andado "mergulhado" em inter-acções activas, operacionais e comunicativas, com uma consciência zombie do que vivia.
Tenho sido um "sonolento semi-vivo em terra conhecida" quando afinal sou um "membro activo de uma comunidade desconhecida", cheia de partilhas e sincronismos.

Fiquei "zangado" comigo próprio pois, além de detestar ser zombie, um dos meus traumas (e tristeza existencial) é, várias vezes no passado, ter vivido situações para mim significativas e marcantes mas sentidas com a superficial rotina de serem normais e eu apenas um espectador distraído.
Na verdade, só alguns anos depois, percebi essa minha "fraude existencial" de [...ter vivido um hoje morrido…], muito pior do que […ter matado esse hoje à nascença…].

O budismo zen, com menos poesia e mais lógica, tem uma história sobre esta "fraude existencial", história essa que gosto muito e recordo muitas vezes.
Parafraseando:

[Num dia de calor, alguém veste fato de banho, dá mergulhos na água, sai, senta-se e passado algum tempo fica admirado por estar todo molhado.]

A opacidade ao "aqui-agora"do presente, perdendo o que está acontecendo, é como um turista que regressa com milhares de fotografias de por onde andou e sem nenhuns "recuerdos" existenciais do que lhe aconteceu.
Ou seja, é andar na vida como zombies, chorando em filmes e telenovelas que repetem cenas da família, da vida e do trabalho mas por onde passa (e vai continuar a passar) impunes e inócuamente.
Só, talvez na velhice se vai recordar essa vida morrida e chorando ao não conseguir "re-encontrar" o que se deixou fugir.

No caso dos pequenos-almoços e do café, o que descobri foi que os frequentadores habituais têm duas ou três mesas preferidas que ocupam sempre que podem, e as preferências não são as mesmas para cada um de nós. Aos sábados e domingos de manhã é tempo de crise pois há enchentes e a escolha não é fácil, pelo que  cada um se senta onde pode.

Depois, quando há uma vaga nas preferências, alguém agarra no seu jornal, livro, café, etc, e muda de mesa, o que origina que outro faz o mesmo para aquela que acabou de vagar e assim sucessivamente, até tudo estabilizar.
É uma autêntica "DANÇA DE MESAS" em que todos rodam em função das suas preferências, muitas vezes ajudados pelos empregados e/ou pelos próprios clientes.

Como curiosidade, alguns dos "recuerdos" que recordei:

- Ás vezes, quando um destes "habituais" chega e a "sua" mesa está vaga sem concorrentes, o empregado já lá colocou parte do seu pedido habitual;

- Já me tem acontecido (e também feito) que quando um destes "habituais" chega, outro que está de saída faz sinal, levanta-se e vai pagar ao balcão. Não é obrigação, é apenas, por delicadeza, um reconhecimento pessoal: [...tu existes, eu confirmo e deixo-te o lugar];

- Outro dia fiquei a ler até ao meio dia, o café estava praticamente vazio e o empregado veio falar comigo, perguntando se podia passar para outra mesa onde costumo também ficar que ele levava tudo. Uma vizinha reformada de 70/80 anos costuma almoçar na mesa onde eu estava para ver a animação da esplanada, e estava tristemente sentada noutro lado. Aceitei e quando saí fez-me um discreto sorriso.

- Outra vez um cliente que estava na esplanada veio ao balcão pedir um isqueiro. A empregada não tinha mas sorriu e pela montra indicou outro cliente na esplanada que tinha e não se importava de emprestar. Curioso fiquei a ver o resultado… funcionou. Quando saí e fui pagar dei-lhe os parabéns, admirou-se pois não se se lembrava de nada, na verdade era a confusão do domingo de manhã.

- Noutra manhã, vi o empregado sair, ir à rua, chamar um cliente que no passeio se ia embora, perguntando-lhe se ainda voltava. Ele disse que não, então o empregado respondeu que era melhor voltar porque outro cliente tinha-lhe dado a carteira que ele deixara na mesa. Ele regressou e os três ficaram agradavelmente na conversa.

A questão que se põe é se isto é um "Big brother" e uma "coscuvilhice de controlo" ou, por outro lado, é uma cumplicidade de empatia social e sincronismo?

É a velha questão se [...dar as mãos é protecção-apoio ou controlo-prisão…]:

Queixava-se a mulher ao marido:
- Quando namorávamos em casa de meus pais, estavas sempre a segurar-me as mãos. Agora sentas-te aí longe!!
Respondia o marido:
-É que dantes tinhas a mania de tocar piano!!!

Na verdade, a fronteira entre a proteccão e alter-ismo (outro-ismo, altruísmo) e o controlo e ego-ismo (eu-ismo) é ténue e difícil de observar, todavia os seus sinais são sempre óbvios e claramente identificáveis. Daqui resulta que, normalmente, só se reconhece a prisão e o controlo quando já é tarde e se está bem emaranhado. Por exemplo, protecção ou controlo:

"Gosta muito de mim, nunca me deixa ir sozinha para lado nenhum!!"

O critério para diagnóstico é simples, na protecção e altruísmo a área de liberdade cresce, no controlo e egoísmo a área de liberdade reduz. É só criar eventos críticos para teste, as reacções nunca enganam.

Aplicar pode ser difícil, pois há vários "bugs" culturais de "baralhamento"[*], por exemplo,  é preciso não confundir a "existência de bem" com a "ausência de mal" (ou vice versa), pois uma não implica a outra. 
Exemplo:

- o facto de "não odiar não significa gostar" e o facto de "não gostar não significa odiar";
- o facto de "não estar presa não significa estar livre" e o facto de "não estar livre não significa estar presa;"
- o facto de "não ser ditadura não significa democracia" e o facto de "não ser democracia não significa ditadura";
- etc etc;
[*] - ver efeito Dunning-Kruger

No caso da "dança das mesas", a opção entre convivialidade social ou controlo de coscuvilhice é simples, pois vive-se na fronteira entre os dois e quando se avança para coscuvilhice bloqueia-se, quando se propõe convivialidade social aceita-se. 
A necessidade de viver lúcido não é "chatice" é como procurar água e alimento… tem que ser feito… pois [… viver livre por dependência não é independência é estar cegamente preso…]

O método aconselha a regra das 3 etapas:

A - Na primeira vez, cai quem não sabe (ham !…ham !… o quê?);
B - Na segunda vez, cai quem quer (uff... uff… outra vez?);
C - Na terceira vez, cai quem é parvo (grrr !.. grrr !… só a mim!).

PS - Por enquanto, penso (?!!?) que vivo na convivialidade social mas já sofri alguns ataques de redução da minha liberdade, por exemplo, imposições de amizade, ou de presença, ou de conversa, ou de opiniões, etc, sempre com a intenção de se ficar com o hábito relacional de vida controlada. 
Foram todas "amigavelmente" 😎 resolvidas e não se repetiramisto é, não houve etapas B, todavia, também "inexplicavelmente" 😇 passaram a ser um convívio demasiado " formal" e distante, ao estilo de "tu não existes".


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