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segunda-feira, 29 de maio de 2017

A boneca aprisionada

A boneca triste
Uma manhã triste no café pois vivia-se uma 2ª feira despovoada, mesas vazias, clientes fugidios.

Numa mesa afastada, uma mãe, trinta anos(??), corpo amorfo e "embotado" mas com cara tensa e vincada, rotinadamente, "aperfeiçoa" a filha de um ano, sentada sobre a mesa.

Mecânica e suavemente, alisa a renda do vestido, corrige um cabelo fora do sítio, limpa um sapato e, com gesto brusco, ajeita-lhe um braço… e, assim, o tempo passa numa constante correcção de pormenores… mas, e a criança?

Imóvel, estática e quieta, de expressão parada, olha em frente e devagar mas sem olhar, a mão aproxima-se da caixa dos guardanapos. Com gesto rápido, a mãe afasta a caixa e põe-lhe o braço, "como deve ser" na posição anterior. Fiquei a pensar, seria autista????

Um estranho (60 anos??) senta-se na mesa ao lado com jornais e revistas. A criança e o estranho olham um para o outro, ela estica a mão na sua direcção, palra e ri-se. Ele dá-lhe um postal que tira da revista e que ela aceita e depois oferece. Começou uma brincadeira de "toma lá, dá cá", em que ele se ri e ela também… divertem-se. O "autismo" desapareceu.

Uhau…afinal não era autista... era só uma "boneca aprisionada", engaiolada.

Quando trabalhei no Hospital Júlio de Matos, no Centro de Saúde Mental Infantil de Lisboa, encontrei crianças com comportamentos semelhantes, mas não tinham esta instantânea alegria e disponibilidade com estranhos. 

Aqui, não me parecia que fosse a mesma situação pois não devia ser um problema interior mas apenas o resultado de um problema exterior, uma defesa instintiva de "prisioneiro versus o perseguidor-carcereiro", reconhecível em crianças, adultos e animais (particularmente cães) nesta situação.

Entretanto, a mãe, "agitada", dizia "- Desculpe! Desculpe! Querida,.. olha para mim, olha para mim,..." mas a criança não ligava, continuava a sorrir e a brincar ao simples "toma lá, dá cá". Tinha encontrado um amigo.

A minha melancólica estranheza foi que ele, um estranho, era mais pai do que ela era mãe e, principalmente, porque a criança, ainda sem saber falar, já sabia reconhecer e optar pela diferença!!!
Na verdade, desde a nascença que o afecto se reconhece e sente pela pele, quer nos humanos quer nos animais ou, como se diz na cultura USA, o afecto existe "by the skin and not by the book", isto é, existe "pela pele e não pela cabeça com suas regras".

Raizupartiça,…o que acontece aos humanos?

A minha manhã de relaxar "conversando" com a torrada tinha acabado. Regressei a casa e fui "desabafar' com o tablet.

Na verdade, estas inovações modernas substituem com eficácia o confessionário e/ou o psicanalista, pois o tablet não me sugeriu que o problema era meu, dado que ninguém tinha reparado, nem me impôs penitências a cumprir, nem comprimidos a tomar, nem traumas de infância a pesquisar.

Em consequência, ficou-me o remorso de ter consentido pois não usufruí daquelas "bengalas" de SOS (confissão ou psicanálise) para o aliviar… assim, lá tenho que me aguentar a mim próprio.



sábado, 27 de maio de 2017

Avó e neta


Café da manhã, na esplanada a neta choramingava porque queria andar a passear e a avó queria que ela estivesse "sentada como uma senhora". Entre "brincos e chorincos" a luta continuava e a avó "atacou" dizendo:

- Se não estás sossegada .... eu já não gosto de ti!

A neta resolveu a questão:

- Não faz mal ... vou ao supermercado e compro outra!

A avó ficou a choramingar e a neta foi passear pela esplanada!

Fiquei espantado, como é que uma criança de 7 a 8 anos adquiriu técnicas correctas de luta contra a perseguição-assédio a controlar a vida do outro.

Na verdade, o ataque da avó foi uma técnica muito usada nestes casos e chama-se "chantagem afetiva". 
A defesa da neta é uma técnica raramente usada por adultos pois, nestes casos, limitam-se a guerras de impropérios e à primária argumentação do "disco rachado", ou seja, dizem sempre a mesma coisa de forma monocórdica, i.é., tocam sempre a mesma corda (vide debates TV).

Pelo contrário, a neta com seus poucos anos de idade, usou a "saída pela tangente",  com um "go in" incorporado que funcionou. 
O que mais me espantou foi a continuação. Na verdade, o choro da avó não funcionou como pressão afectiva para submissão, pois a neta usou a técnica do "tu não existes", técnica preferencialmente aconselhada nestes casos de "chantagem psy" quer seja cognitiva ou afectiva, que é a preferida dos perseguidores/assediadores ou, dizendo em francês, dos "emmerdeurs" (a tradução portuguesa não é elegante mas, intuitivamente, é óbvia).

No caso da neta, ela usou o método da "saída pela tangente" que consiste em, num ponto da lógica usada pelo outro, fazer uma inflexão noutra lógica diferente que o coloca fora da jogada e resolve o problema.
Ela usou a asserção "recurso estragado substitui-se no supermercado", eventualmente aplicado na família para alimentos estragados e, criativamente, utilizado aqui.

Por sua vez, sem o saber, detonou na avó um "go in". Esta técnica associa um processo cognitivo com um afectivo, em que este detona um "curto circuito" mental  susceptivo de bloquear o sistema, ficando este sem programa operativo. É uma espécie do "écran azul" do windows quando fica inoperativo e obriga a reiniciar.
Exemplo:

Um dia na FNAC, entrei comendo uma pequena tablete de cereais. De repente ouvi atrás de mim um "berro" dizendo "Ehhhh… não pode estar a comer". Era o porteiro, híbrido com segurança, que me apontava o dedo. 
Em vez do método usual de debate político (vide 25 Mai 17) resolvi conversar ao estilo de dois adeptos de futebol do mesmo clube.

Voltei atrás e perguntei "suavemente" - O que chama comer?.
Os olhos "pararam" e ficou com o ecran azul do windows à procura de programa. 
Resolvi ajudar:
- É dar dentadas ou mastigar?
O azul do programa mental ficou cinzento escuro, a alternativa não era óbvia pois na verdade era um dilema (ou… ou). Fiquei à espera… com a esperança que dissesse TODOS ao estilo do Vasco Moscoso de Aragão dos "Velhos Marinheiros" de Jorge Amado… não o fez.

Resolvi ajudar com um trilema e acrescentei: - Se guardar na algibeira resolve?
Como dois amigos do mesmo clube, respondeu também "suavemente": - "siiimmm". Agradeci, dei uma dentada à frente dele, comecei a mastigar, acenei um adeus e fui-me embora. Ele continuava com o ecran azul.

No caso da avó e neta, esta não fez "go in", ele aconteceu. Foi a própria avó em auto-serviço que acrescentou esse factor ao pensar "não gosta de mim… sou de deitar fora". Assim, deu-se um curto circuito, fez-se ecran azul, ficou sem energia e precisou re-iniciar o sistema reavaliando a situação.

O que me espantou foi a continuidade da acção da neta, pois fez a técnica aconselhada pelos peritos para os casos de assédio. É a técnica do "tu não existes".

É uma técnica simples e de fácil aplicação. Constitui criar uma atitude na qual o perseguidor (narcisista) se torna transparente. É olhado mas não é visto, é ouvido como ruído, não é respondido, não é inter-agido pois não tem lugar nos actos do outro em que, por ex., está "distraído" vendo o telemóvel. 

A maior "dor" de um perseguidor narcisista não é ser combatido, argumentado, conflituado pois isso é a sua "alegria", o seu prazer, o seu objectivo.
O que lhe dói é "não existir", não ser polo de relação, não ser considerado interlocutor e, mais doloroso ainda, é nem sequer ser ignorado ou recusado, pois estas alternativas são ainda conexões, apesar de pela negativa.
A solução é simplesmente criar um "vácuo relacional" em que as interacções que emite não têm polo receptor qualquer que seja o formato, canal, mensagem, etc. Como exemplo e treino é experimentar, ao espelho, fazer o olhar de quem está a ver mas a pensar noutra coisa, ou seja, quem está à frente é apenas um objecto da paisagem,  mesmo se falante.

Na continuação, o que a criança fez foi não se deixar apanhar pela chantagem afectiva das lágrimas e tristeza (reforço da primeira tentativa) e foi passear. 

Eu fiquei à espera do resultado pois queria saber se haveria a segunda etapa (B). Não houve, ela voltou contente, as relações estavam normais, ela saía para ver a montra da tabacaria e o "sentar como uma senhora" não atacou mais. As duas pareciam felizes.

Afinal isto do educar vale para os dois lados… felizmente.

quinta-feira, 25 de maio de 2017

Convivialidade e a "dança das mesas"


Hoje, como é hábito, tomei o pequeno almoço num café-pastelaria do bairro, bom café, bons bolos, bom pão e almoços rápidos. Os habituais clientes são vizinhos, reformados ou não, trabalhadores do hospital próximo ou veraneantes da praia ao lado que aqui se encontram e se relacionam ao estilo de passageiros habituais de metro ou de comboio.

O café tem dez mesas no interior e outras dez na esplanada, das quais os habituais clientes têm as suas preferidas e, na sua falta, as desconsoladamente usadas para tomar café, ler emails, facebook, jornais, revistas, livros ou conversar.

Hoje aconteceu algo inesperado que me fez olhar e pensar de modo diferente o quotidiano habitual.

Cheguei ao café ligeiramente à frente de uma cliente para o seu pequeno lanche, com um repousante intervalo a meio da manhã 
Quando entrei, só havia duas mesas, uma era semi-desconsolada e outra semi-preferida, pois ambas eram no meio da sala sem os confortáveis peitoris das janelas para pôr o livro, revistas, mala, tablet, etc, o que obrigava a usar cadeiras debaixo da mesa. 

A mesa semi-preferida seria a minha escolha, porém a cliente atrás de mim era lá que se costumava sentar, longe do caminho e com vista para o exterior, saboreando assim alguns minutos relaxantes. Se estava ocupada ia para o balcão, comia e ia-se embora.

Como costumo ficar no café cerca de uma hora, comendo, lendo e escrevendo, decidi deixar essa mesa para ela e sentar-me na outra, procurando mudar logo que vagasse alguma das preferidas.

O estranho é que essa cliente quando passou por mim, além dos costumados ligeiros "bons dias", disse-me claramente "obrigado".
Fiquei admirado e a pensar porquê. O que se tinha passado? Eu apenas me tinha sentado numa mesa.

Abri o tablet, fui comendo, pensando e listando "recuerdos" de situações nesses pequenos almoços.

Ao fim de algum tempo a conclusão foi interessante pois percebi que tenho andado "mergulhado" em inter-acções activas, operacionais e comunicativas, com uma consciência zombie do que vivia.
Tenho sido um "sonolento semi-vivo em terra conhecida" quando afinal sou um "membro activo de uma comunidade desconhecida", cheia de partilhas e sincronismos.

Fiquei "zangado" comigo próprio pois, além de detestar ser zombie, um dos meus traumas (e tristeza existencial) é, várias vezes no passado, ter vivido situações para mim significativas e marcantes mas sentidas com a superficial rotina de serem normais e eu apenas um espectador distraído.
Na verdade, só alguns anos depois, percebi essa minha "fraude existencial" de [...ter vivido um hoje morrido…], muito pior do que […ter matado esse hoje à nascença…].

O budismo zen, com menos poesia e mais lógica, tem uma história sobre esta "fraude existencial", história essa que gosto muito e recordo muitas vezes.
Parafraseando:

[Num dia de calor, alguém veste fato de banho, dá mergulhos na água, sai, senta-se e passado algum tempo fica admirado por estar todo molhado.]

A opacidade ao "aqui-agora"do presente, perdendo o que está acontecendo, é como um turista que regressa com milhares de fotografias de por onde andou e sem nenhuns "recuerdos" existenciais do que lhe aconteceu.
Ou seja, é andar na vida como zombies, chorando em filmes e telenovelas que repetem cenas da família, da vida e do trabalho mas por onde passa (e vai continuar a passar) impunes e inócuamente.
Só, talvez na velhice se vai recordar essa vida morrida e chorando ao não conseguir "re-encontrar" o que se deixou fugir.

No caso dos pequenos-almoços e do café, o que descobri foi que os frequentadores habituais têm duas ou três mesas preferidas que ocupam sempre que podem, e as preferências não são as mesmas para cada um de nós. Aos sábados e domingos de manhã é tempo de crise pois há enchentes e a escolha não é fácil, pelo que  cada um se senta onde pode.

Depois, quando há uma vaga nas preferências, alguém agarra no seu jornal, livro, café, etc, e muda de mesa, o que origina que outro faz o mesmo para aquela que acabou de vagar e assim sucessivamente, até tudo estabilizar.
É uma autêntica "DANÇA DE MESAS" em que todos rodam em função das suas preferências, muitas vezes ajudados pelos empregados e/ou pelos próprios clientes.

Como curiosidade, alguns dos "recuerdos" que recordei:

- Ás vezes, quando um destes "habituais" chega e a "sua" mesa está vaga sem concorrentes, o empregado já lá colocou parte do seu pedido habitual;

- Já me tem acontecido (e também feito) que quando um destes "habituais" chega, outro que está de saída faz sinal, levanta-se e vai pagar ao balcão. Não é obrigação, é apenas, por delicadeza, um reconhecimento pessoal: [...tu existes, eu confirmo e deixo-te o lugar];

- Outro dia fiquei a ler até ao meio dia, o café estava praticamente vazio e o empregado veio falar comigo, perguntando se podia passar para outra mesa onde costumo também ficar que ele levava tudo. Uma vizinha reformada de 70/80 anos costuma almoçar na mesa onde eu estava para ver a animação da esplanada, e estava tristemente sentada noutro lado. Aceitei e quando saí fez-me um discreto sorriso.

- Outra vez um cliente que estava na esplanada veio ao balcão pedir um isqueiro. A empregada não tinha mas sorriu e pela montra indicou outro cliente na esplanada que tinha e não se importava de emprestar. Curioso fiquei a ver o resultado… funcionou. Quando saí e fui pagar dei-lhe os parabéns, admirou-se pois não se se lembrava de nada, na verdade era a confusão do domingo de manhã.

- Noutra manhã, vi o empregado sair, ir à rua, chamar um cliente que no passeio se ia embora, perguntando-lhe se ainda voltava. Ele disse que não, então o empregado respondeu que era melhor voltar porque outro cliente tinha-lhe dado a carteira que ele deixara na mesa. Ele regressou e os três ficaram agradavelmente na conversa.

A questão que se põe é se isto é um "Big brother" e uma "coscuvilhice de controlo" ou, por outro lado, é uma cumplicidade de empatia social e sincronismo?

É a velha questão se [...dar as mãos é protecção-apoio ou controlo-prisão…]:

Queixava-se a mulher ao marido:
- Quando namorávamos em casa de meus pais, estavas sempre a segurar-me as mãos. Agora sentas-te aí longe!!
Respondia o marido:
-É que dantes tinhas a mania de tocar piano!!!

Na verdade, a fronteira entre a proteccão e alter-ismo (outro-ismo, altruísmo) e o controlo e ego-ismo (eu-ismo) é ténue e difícil de observar, todavia os seus sinais são sempre óbvios e claramente identificáveis. Daqui resulta que, normalmente, só se reconhece a prisão e o controlo quando já é tarde e se está bem emaranhado. Por exemplo, protecção ou controlo:

"Gosta muito de mim, nunca me deixa ir sozinha para lado nenhum!!"

O critério para diagnóstico é simples, na protecção e altruísmo a área de liberdade cresce, no controlo e egoísmo a área de liberdade reduz. É só criar eventos críticos para teste, as reacções nunca enganam.

Aplicar pode ser difícil, pois há vários "bugs" culturais de "baralhamento"[*], por exemplo,  é preciso não confundir a "existência de bem" com a "ausência de mal" (ou vice versa), pois uma não implica a outra. 
Exemplo:

- o facto de "não odiar não significa gostar" e o facto de "não gostar não significa odiar";
- o facto de "não estar presa não significa estar livre" e o facto de "não estar livre não significa estar presa;"
- o facto de "não ser ditadura não significa democracia" e o facto de "não ser democracia não significa ditadura";
- etc etc;
[*] - ver efeito Dunning-Kruger

No caso da "dança das mesas", a opção entre convivialidade social ou controlo de coscuvilhice é simples, pois vive-se na fronteira entre os dois e quando se avança para coscuvilhice bloqueia-se, quando se propõe convivialidade social aceita-se. 
A necessidade de viver lúcido não é "chatice" é como procurar água e alimento… tem que ser feito… pois [… viver livre por dependência não é independência é estar cegamente preso…]

O método aconselha a regra das 3 etapas:

A - Na primeira vez, cai quem não sabe (ham !…ham !… o quê?);
B - Na segunda vez, cai quem quer (uff... uff… outra vez?);
C - Na terceira vez, cai quem é parvo (grrr !.. grrr !… só a mim!).

PS - Por enquanto, penso (?!!?) que vivo na convivialidade social mas já sofri alguns ataques de redução da minha liberdade, por exemplo, imposições de amizade, ou de presença, ou de conversa, ou de opiniões, etc, sempre com a intenção de se ficar com o hábito relacional de vida controlada. 
Foram todas "amigavelmente" 😎 resolvidas e não se repetiramisto é, não houve etapas B, todavia, também "inexplicavelmente" 😇 passaram a ser um convívio demasiado " formal" e distante, ao estilo de "tu não existes".


quinta-feira, 18 de maio de 2017

Pensar o que somos versus o que temos

Quatro perguntas e uma história...

1ª pergunta

Como ponto de partida, e como poderia dizer um discípulo de La Palisse... "se tivesse nascido noutro tempo e noutro paísEU não seria EU, mas sim, outro EU diferente".

Mas poderia também pensar... "em qualquer época e país, Eu seria sempre o mesmo… só teria linguagem, comportamentos, hábitos, etc…diferentes",

e por exemplo, EU em épocas diferentes... seria "O" mesmo EU???


Numa palavra, […Eu sou o que sou ...ou … Eu sou aquilo que "adquiri" e "tenho" ??...]

2ª pergunta 

...que não se "cala" e me espicaça: "Com tudo o que sou e o que tenho, afinal onde está o Eu???

Uma história:

O Manel tem um problema cardíaco e entra no Hospital para fazer um transplante com o coração que era da Maria. A operação foi um êxito e o Manel sai saudável com o novo coração.

A tecnologia evolui e a medicina também.

O Manel tem um problema cerebral e entra no Hospital para fazer um transplante com o cérebro que era da Maria. A operação é um êxito e o Manel sai saudável com o novo cérebro.

Na perspectiva da pergunta anterior, surge outra pergunta:

Depois da operação, quem sai do hospital é o Manel com o cérebro da Maria ou é a Maria com o corpo do Manel ??

Por outras palavras, o Manel continua vivo ou agora quem está vivo é a Maria "undercover" (disfarçada) sob o corpo que era o Manel???

A história pode ser ficção cientifica mas, se se tornar tecnicamente possível, os debates políticos nos partidos (quem é o líder?), teológicos nas religiões (quem é o pecador?), jurídicos nos tribunais (quem é o culpado?), económicos nos negócios (quem é o dono?) e amorosos nas famílias (quem me beija?) vão ser sérios e animados.

Continuando a prospecção de ideias, as perguntas "saltam", por ex., quando o Manel faz uma festa ou dá uma palmada a alguém, é a SUA mão que decide o que fazer ou é o SEU cérebro que opta e  "manda" a mão concretizar? 
Um filme:


Como se vê, é a mão do Miguel que executa a acção mas é o cérebro da Sam que decide o que fazer (festa ou palmada???) pois o cérebro do Miguel ficou "fora de jogo"… e, por graça dos deuses, ele fica calmo, feliz e não-consciente do que a SUA mão anda a fazer e até agradece aos qu'ridos lideres a sorte que tem de decidirem por ele.

Huau…!!! Huau…!!!, será isto apenas uma forma física (ligação-por-cabo) do que se chama "obedecer a quem manda"????, ou, por outras palavras, mandar é só...

[…fazer é o outro "engolir" as minhas decisões e executá-las em substituição das suas]

ou seja, é este mecanismo que, em termos psicológicos, se chama ser autoritário-obediente, em termos sociais ser ditadura-repressão e em termos culturais ser líder-liderado?

Bom, na verdade e na prática, apesar de não ser ficção cientifica, não andamos por aí "ligados-por-cabo" uns aos outros com relações de mandar-obedecer.

3ª pergunta

...e se for "ligação-wireless"?

Um filme:

Huau…!!! Huau…!!!, afinal parece que também há  "ligação-wireless" e não é ficção científica.

Bom, na verdade e na prática, apesar de não ser ficção cientifica, não andamos por aí a sofrer implantes cerebrais para se ficar "ligados-por-wireless"  em relações mandar-obedecer*.

[*] - Por enquanto (!!??)


4ª pergunta,

...e se for "ligação-por-educação" ???

Na verdade, educar é o educador incorporar padrões na mente dos educáveis, ou seja, uma espécie de implantes cerebrais de execução de comportamentos desejados, por exemplo, come carne versus não come carne, adoras este deus versus não adoras este deus, emigrante é bom versus emigrante é mau, saia curta versus saia comprida, etc. 
O nome técnico (diplomata) destes implantes cerebrais virtuais chama-se culturização nos bem-falantes, educação na sociedade, missionação na religião, marketing nos negócios, propaganda na política, o-que-deve-ser no fanatismo.

Todavia, de um modo simplex, são apenas automatismos comportamentais pré-estabelecidos que temos a par do que somos. A linguagem é um destes automatismos adquiridos:

No restaurante, dizia o dono perante o cliente francês e o inglês:
- Que chamem ao café: "cafê" ou "cófi"… percebe-se que se enganem, mas que chamem "lê" ou "milque" ao leite quando se sabe perfeitamente que é LEITE,... é uma parvoíce!![*]

[*] - Pode parecer uma anedota de implantes cerebrais virtuais mas, jornal 15 Mai 17, um responsável político diz que "…as mulheres não podem trabalhar de saia travada". Considerando que a saia travada obriga a ter as pernas juntas, qual era o trabalho no emprego em que ele estava pensando? Como acrescentou que [...a saia tem que ser larga…] os implantes culturais que ele usa devem estar bem enraizados acerca do trabalho das mulheres.

Uma história de implantes cerebrais virtuais:

O Manel trabalha numa empresa e namora a Maria. Combinaram, pelas 18:00 horas, horário normal de saída, irem passear e jantar fora.
À tarde, o chefe do Manel diz-lhe que tem que ficar até às 23:00 horas para terminar o trabalho.

O que faz o Manel sai às 18:00 e decepciona o chefe ou sai às 23:00 horas e decepciona a Maria?

A - A situação pode ser simples:

Por educação, o Manel tem um implante virtual no cérebro que decide "ao chefe nunca se diz não, não pensas mas fazes" e automaticamente bloqueia o seu sistema de tomada de decisões. 
córtex fica fora-de-jogo e, sem angústias nem hesitações, "ordens são ordens"[*] pelo que a sua decisão de sair e jantar com a Maria desaparece e a decisão do chefe ocupa o lugar.
O chefe é um líder e o Manel é um obediente.

[*] - Na vida militar este reflexo condicionador (Pavloviano?) tem um segundo reflexo condicionado, enxertado para reforço se há hesitações, é a aprendizagem "É uma ordem directa". Em 90% dos casos o córtex paralisa e bloqueia.
A recruta na vida militar pretende inserir esses dois reflexos condicionados a par de um terceiro da "obediência à voz única" vinda do símbolo de hierarquia, galão (oficial) ou divisa (sargento). (ver psicologia de re-educação e treino militar e outros)
A actividade diária de "ordem unida" (marchar ritmicamente em grupo formatado, cumprindo ordens) tem esses objectivos, reforçando a relação "normal" instrutor-recruta "a mão é tua, o cérebro é meu".


B - A situação pode ser complexa:

Por educação, o Manel mantém o seu córtex em pleno funcionamento[*]. 
Neste caso, qualquer uma das decisões tem diferentes vantagens, inconvenientes, pontos fortes e pontos fracos para ele e Maria, quer no momento presente quer no futuro. A integração de todas essas variáveis origina alternativas de diferentes custos e lucros… É PRECISO PENSAR E DECIDIR uma, outra ou aqueloutra das muitas possíveis, pois as probabilidades existentes são muitas (metodologia decisória "What If…"). 

Não imagino o que ele fará, mas o único erro possível é a decisão não ser sua. Por outras palavras, se ficar a trabalhar não é porque o chefe mandou é porque ele PENSOU e decidiu ficar.

[*] - Da mosca ao ser humano (sobre)viver é decidir, i.é., corro-não corro, bebo-não bebo, luto-fujo,etc. Em cada segundo, tomamos decisões, optamos pelo mais correcto, recusamos o mais incorrecto, desde respirar a não-respirar se gases, debaixo água, etc.
Neste sentido, educar é preparar para a vida, ou seja, é preparar para tomar decisões. Educar "amarfanhando" a capacidade de tomar decisões e potenciando o córtex bloqueado (i.é., obedecer zombie "porque-sim") é despreparar para a vida.


A decisão-zombie "passadeira-atravesso" dá multa, tem que ser decisão-pensada "passadeira: atravesso? Sim ou Não??".

Um filme:


Bom, na verdade e na prática, a "ligação-por-educação" não é ficção cientifica, ela anda à solta "aí fora", na família, nos amigos, no trabalho, na sociedade.

Um história

Um dia em África,

desembarcando numa aldeia piscatória isolada, "esquecida" na costa, encontrei um homem (50 anos?) "derramado" contra uma árvores, quieto e abúlico, olhando o ar. 
Tinha um aspecto adoentado e, apesar de ser de cor negra, parecia-me cinzento. Perguntei se estava doente e o que tinha.  Disseram-me que não estava doente, que nada se podia fazer, era o "abico"*

*- Abico: mau olhado(?), bruxedo pelo nome (*), feitiço (?), quebranto (?)

Procurei saber o que era isso, mas a resposta foi estranha. Disseram-me que, quando se nasce, as mães dão dois nomes, o nome real que fica secreto entre ela e o filho(a) e o nome conhecido de todos.
Se alguém souber o nome secreto poderá fazer bruxedo para ele, é fazer "renascer para a morte". Isso é o "abico". Nestes casos, só há que esperar pela morte. 
Aquele homem, estava com o "abico", estava morrendo, nada se podia fazer.

Espantado olhava para ele e pensava que aquilo não era suicídio, nem "morte matada, mas morte morrida", como diria o poeta[*], pois tinha desistido de estar vivo. Mais tarde, percebi que era apenas simples "implante cerebral virtual" que aquela cultura instalava nos filhos.

[*]- João Cabral de Melo Neto, "Morte e vida severina".

Durante os anos que lá estive, em algumas povoações ao longo da costa com pessoas conhecidas, ás vezes perguntava se eles também tinham nome secreto. Ou não respondiam ou diziam que sim e, curiosos, perguntavam se eu tinha. Quando respondia que não, olhavam-me com pena e concluíam "não anda protegido".

Muito mais tarde, ao estudar "mentalizações culturais" relacionei com o implante virtual "mau olhado" da cultura tradicional do Portugal profundo. Nos meus recuerdos da infância lembro-me de "espreitadelas" de rezas para tirar "mau olhado" feitas por "especialistas".

Tudo se resumia a uma lenga-lenga que se dizia enquanto se deitavam gotas de azeite tiradas de uma colher sobre água quieta num prato. Quando funcionava, o azeite dissolvia-se na água e desaparecia, se não funcionava ficavam as gotas de azeite bem demarcadas sobre a água, vendo-se perfeitamente a sombra no fundo.

Já adolescente, no liceu por causa da aulas de Físico-Químicas, andei uma semana a deitar azeite na água (sem lenga-lengas) mas nunca consegui que elas desaparecessem. Acabei por concluir (com ajuda do professor num intervalo) que era um problema de luz, pois as bolhas estavam, mas as sombras desapareciam. Descansei… sempre me irritou baralharem-me os neurónios.

Como conclusão, nós somos o que somos somados ao que temos e realmente estamos cheios de implantes virtuais que, numa linguagem do senso comum, são as "manias" da sociedade em que vivemos. 
O paradoxo é que não podemos viver sem elas e temos que transmiti-las aos nossos filhos. O que podemos, e devemos, é não destruir mas potenciar a capacidade deles tomarem decisões[*], capacidade essa com que a natureza naturalmente nos equipou. Se o conseguirmos isso chama-se DEMOCRACIA.

[*] - A desculpa de educar não justifica destruir essa capacidade.