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quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Falar e Conversar

Como ponto de partida:

- "Olá Julieta", fala o computador e a Julieta activa o neocortex e compreende;
- "Olá Julieta", conversa o Romeu e a Julieta activa neocortex e sistema limbico, compreende e emociona-se.

A  -  Falar é um diálogo de troca de dados ao estilo Google.
Um diz "Em que ano nasceu D.Afonso Henriques" e o outro diz "1.109". Nenhum está implicado ou talvez apenas um esteja mas não há transação emocional.

Como exemplo, passeando o meu cão no bairro encontro um vizinho que diz "Bom dia, como está?" e eu complemento "Bom Dia, ...normal, o costume" é o chamado ritual Google do "Olá e Adeus". 

Um dia resolvi não seguir o ritual, fazer conversa e acrescentei "Bom Dia, não muito bem e o médico não resolve", rapidamente tive a resposta "As melhoras... tenho que ir à farmácia", ou seja "Olá e Adeus".

Não estou a criticar, eu faço o mesmo, são os rituais neutros da actual vida social, para falar com as pessoas é preciso não ter qualquer implicação emocional, ser tipo google, isto é, o estilo aldeia não funciona na cidade. 
Lá, numa rua de 20 metros com 10 vizinhos, conversando 5 minutos "afectivos" com cada um leva-se 50 minutos para chegar ao fim.

Porém, o ritmo da cidade não permite, mata a conversa e impõe "cegueira social" ou falar sem implicação afectiva. Sair do Metro e dar Bom Dia a todo o vivente por quem passa ou não chega ao trabalho ou é levado para o hospital psiquiátrico ou esquadra da Policia  por assédio.

Este predomínio do falar sobre o conversar transforma as relações quotidianas de humanas em mecânicas e  diz-se "se faz favor" em estilo bofetada, robot, carente e raramente relacional (no video a seguir: ouvir o please relacional).

O meu computador fala comigo e eu oiço, pois avisa-me da chegada de emails, do fim de downloads, se foi ou não com sucesso, de eventual avaria e até de possível solução, porém NUNCA HÁ CONVERSA.

Pelo contrário, às vezes com o meu cão HÁ CONVERSA.  Ele, por sinais, diz-me que precisa ir à rua e se está aflito ou não (transação emocional), eu recebo e respondo com rapidez ou lentidão... entendemo-nos.

No "falar" o traço emocional pode ser "sugerido" pelo outro, intencional ou inconscientemente.

Por exemplo, o telemarketing. Considerando que se me telefonam e me usam como material para fazer vendas eu posso usá-los como material para experiências falatórias, atendendo a que pagam a chamada.

Quando recebo estas chamadas com o habitual protocolo de venda "Bom dia, como está?", estilo computador, às vezes respondo "Não muito bem, as dores não passam!" com a entoação carente de quem espera resposta
Em 99% dos casos obtenho um silêncio mais ou menos prolongado seguido de alternativas, das quais costumo fazer listagem. 

É vulgar, mas não muito comum, o telefone desligar, pelo que deduzo que foi consultar o manual. Mais vulgar é um discreto sussurrar do tipo "Não sou médico(a)" o que me permite iniciar a saída do ritual estereotipado introduzindo laivos emotivos.

Há quatro caminhos possíveis. Um, é prolongar o quid pro quo perguntando admirado "Não é o Dr. Silva Ambrósio?" e em função da resposta decidir a continuação.
Outro é atacar (porque me telefona?) forçando uma explicação e alterando a posições top-down. A terceira é facilitar o trabalho de marketing com a posição submissa de defesa  (peço desculpa!),

Por fim a minha preferida que é manter a situação e forçar o outro a definir o caminho futuro (é pena, isto dói...) e esperar o que se segue. Esta é do estilo da que na giria se chama a posição jesuíta ou a negação dialéctica, isto é, obrigar o outro a mover-se, uma espécie de doce amargo ou na cultura chinesa Kong An:

- Meu padre, porque dizem que os jesuítas a uma pergunta respondem com outra pergunta?
- Meu filho, porque não há-de ser assim?
ou
- Não tem razão, não há dúvida que os carros alemães são os melhores!
- Tem razão, eles têm aspectos muito bons!

Ps - Estatisticamente homens e mulheres integram~se em padrões diferentes (frases, palavras, entoações, intensidades, silêncios, etc) para além de nuances pessoais. 

B -  Conversar é um diálogo em que os dados (palavras, gestos) trazem rastos pessoais (slices) (vestígios, pedaços, implicações) de quem fala, o que não acontece no estilo neutro, dito Google. No conversar, cada frase traz um pedaço do outro que é também comunicado. Como exemplo:

Um pai vai buscar o filho (5 anos) à escola e no caminho pergunta "Hoje, o que te aconteceu de bom?", ele fica pensativo e responde "Ri-me". Esta resposta traz consigo muitos rastos pessoais não só dele como da sua relação com o pai. 

Se fosse um estranho, distante e detestado talvez tivesse uma forma Google do "Olá e Adeus", isto é,  podia dizer "o costume", "as aulas", "tudo", etc, ou até talvez "rir"
Simplesmente "Ri-me" implica um desnudar pessoal, a entrega de uma intimidade, uma vivência pessoal, ou seja, ele não está falando com o pai, ele está conversando com o pai, expondo-se o que naturalmente* não faz com um estranho.

* - O "naturalmente" é aqui um conceito importante. À nascença algumas aptidões estão instaladas, entre elas o aprender e a empatia. Por exemplo, assim que nasce a primeira actividade do bebé é aprender e se não o faz morre. Refiro-me a aprender a respirar cá fora. 
A empatia (versão simpatia e antipatia) é semelhante ao aprender. Todos temos essas aptidões (são "ferramentas" de sobrevivência), mas em alguns casos foram bloqueadas e definhadas.
Paradoxalmente, a sociedade depois de ter estragado fala em ensinar. O problema da empatia e do aprender tens duas vertentes, potenciar o que existe e não estragar o que existe. 
Pessoalmente durante anos ensinei jovens a estudar, ou seja, a aprender por si, e sempre tive a sensação que não ensinava nada novo apenas redescobriam o que já sabiam fazer: aprender. 
Uma jovem de 11 anos que não gostava e não queria estudar, um dia depois de sozinha fazer um "estudo" de matemática bem feito, disse-me espantada: "Mas é só isto, mas isto é giro".

Esta jovem nesse ano passaria a todas excepto a Matemática. Simplesmente por ironia do destino nesse ano o Ministério decidiu exame para todos. Depois a mãe visitou-me e contou-me que no fim de semana ela não quis estudar pois já tinha "chumbado" e na 2ªfeira fez o exame... e PASSOU. 
Ao nosso lado, ela ria, dançava e cantava "... e não copiei". Isto não era o neocortex a manifestar-se, era o sistema limbico a festejar o sentir-se  PESSOA e o ter tido sucesso era apenas um "acidente" no quotidiano.

Em muitos casamentos já perto do divórcio, a queixa normal é "ele(a) não fala comigo". Porém se  durante horas cada um falar com o outro ao estilo de relatório, este falatório não só não impede como o acelera o divórcio.
Eles não precisam de falar um com o outro, eles precisam é de conversar um com o outro.

Ir jantar fora para falar (relatar factos bons ou maus) ao outro não resolve a relação, porém, se fechados na despensa, conversarem com traços afectivos (slices) talvez abra caminhos de solução, não só pelos conteúdos mas principalmente pela forma.

Outra queixa no divórcio é o outro não contar segredos, mas se ele(a) contar segredos ao colega isso não origina casamento entre eles, mesmo que sejam de sexos opostos. Não é aqui que está o problema.

O problema está na diferença entre FALAR (trocar palavras e gestos) sem transações afecto-emotivas e CONVERSAR (trocar palavras e gestos) com transações afecto-emotivas.

Nesta diferença a palavra chave é transação, isto é, ambos podem estar cheios de emotividade, por ex, um de raiva e o outro de medo, mas elas não se acolhem e encaixam... é preciso que a emotividade de um seja recebida (empatia, simpatia, antipatia) pelo outro, acolhida, assimilada e respondida positiva ou negativa. 

Conversar significa mútua transação do neocortex e sistema límbico, informações e emoções que saltam de um para outro, é [...uma espécie de música que ambos partilham e dançam].

No video a seguir, há um falar que se transforma em conversar e como é filme tudo acaba em bem.
O começo é um falar (neocórtex) que "pede" a entrada do límbico (que é aceite), repare-se no "please" com seu formato para o límbico e seu conteúdo para o neocortex.
Depois, ambos activos processam trocas mútuas com conversa:


Este jogo do entrelaçar neocortex e límbico pode ser "natural" ou "proposto".

1  -  Por "natural"
refere-se ao modo instintivo de estar na situação, um pouco estilo existencialista do "homem e sua circunstância" ou, para não ofender a igualdade de género, refraseando "humanos e sua circunstância".

Sob o ponto de vista pedagógico, e não entrando nos conceitos psy, prefiro substituir o conceito de circunstância, demasiado aleatório para o meu gosto, pelo conceito e métodos da "Lei da situação" (M. P. Follett).
Quer isto dizer que na relação ensino-aprendizagem prefiro alterar a situação proposta para favorecer potencialidades de outros comportamentos, deixando e solicitando o uso de liberdade de decisão. Eventual fornecimento de informação é no sentido de clarificar variáveis existentes e não pressionar orientação.

Matematicamente pode-se expressar dizendo C=f(P,M), isto é, homem e sua circunstância ou comportamento(C) é função da pessoa(P) e do meio(M), ou seja, em vez de alterar comportamentos mudando a pessoa (remédios??) opta-se por a pessoa ficar intocável e alterar-se a situação. Passa-se de metodologia psicológica para metodologia sociológica.

Como exemplo, estão as situações de namoro adolescente em que a pressão hormonal activa empatias existentes (o psy) e o falar neutro passa naturalmente para longas conversas-de-namoro, um misto harmónico de neocortex e sistema límbico, quer por face-a-face, quer tele (telefone, internet), quer por carta e as vezes por mensageiro.
Ps - Neste exemplo, estou a excluir o caso de ser uma cultura-de-engate que neste caso em vez de "natural" passa a "proposto".

2  -  Por "proposto"
refere-se ao modo de tentar criar conversas por meio de situações susceptíveis de as provocar, gerindo  Leis da Situação (variáveis existentes ou introduzidas)*. Há vários métodos desde um-a-um, um-a-muitos e muitos-a-muitos.

*- Tradicionalmente, no namoro, o velho convite de ir ouvir os discos novos que tem em casa.

Por experiência pessoal quando a lei da situação usada é harmónica com o grupo o problema não é começar... é terminar a conversa:

Um dia de "Conversa" de técnicos e chefias autárquicos,
em que ao almoço a "conversa" continuava
A base destes métodos é sempre a relação um-a-um, cujo ponto crítico é a forma de colocar questões, em simplex, a "pergunta" proponente da conversa.

Pessoalmente, quando ensinava a estudar e antes de começar tinha sempre uma "conversa" (cerca de 2 horas) só com o jovem não era para investigação mas para nos conhecermos ou, principalmente, para ele sentir onde se ia meter e me avaliar.

No fim pedia-lhe para pensar e dizer ao pais se queria começar e pedir-lhes para me telefonar a resposta e só então eu decidiria. Obrigado ou não, ele agora sabia que eu queria a decisão dele, mesmo que apenas obedecesse.
Mais tarde, era sempre possível entre a mensagem recebida, o seu conteúdo e a posição dele nas sessões, configurar a rede família (sociometria) entre a mensagem, pais, ele e relações.
O que estava em causa era o design de transações e empatias relacionais*.

*- Aprendi com o Prof. Dr. João dos Santos (CSMIL-Centro Saúde Mental Infantil de Lisboa) quando dizia que, se há antipatia na relação, ensinar/ajudar torna-se difícil.

Há algumas regras a ter em atenção, mas a base é a mesma: a resposta tem sempre que dar trabalho a decidir para responder. Esta conversa não pode ter o modelo do interrogatório judicial "Sim-Não".

Convém não fazer perguntas abstractas, indefinidas e amplas do tipo "Como vai a escola (a vida?, o trabalho?,etc)", pois normalmente a resposta é do tipo "Olá e adeus" para despachar. Este falar não produz conversar.
Convém ter um frasear que torne a resposta "Sim-Não" impossível e obrigue a formulação, portanto, implicação pessoal.

Como exemplo já atrás citado: "Hoje, o que te aconteceu de bom?". Se a resposta for de "fuga", com o  estilo "tudo normal", "tudo bom", etc,  a conclusão é que o outro não está em clima (in the mood) de conversa ou pelo tema ou pela relação.

Também não convém fazer perguntas sobre "fraquezas" ou "auto-criticas" do tipo "Qual a disciplina (a função?, a tarefa?, etc)... mais difícil?".
É preferível pedir uma avaliação sobre si próprio com um dilema a decidir "Penso ajudar (explicar?, dar?, etc) em... ou em... qual será melhor?".

Conversar é fácil, às vezes o difícil é não o matar à nascença!

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

O letrado-analfabeto e o saber ler


Consegue ler? Sabe o que é?
Conselho de um Shaman para se viver a Vision Quest:
"Estar na natureza não é ver plantas e animais
é sentir a vida que transportam consigo…!!!!",

Conselho de um Leitor para se viver a leitura:
"Ler não é vocalizar palavras 
é sentir os seus significados (dreaming state)…!!!",

Repensando estas afirmações, pode dizer-se que arrastam o paradoxo "forma e conteúdo" cujo desequilíbrio nos impede de viver muitas das vivências e entre elas pode estar a leitura.

Como começo, um ponto de partida: "Como nos ensinam a ler ?" e "Como lemos?"


O que é ler ?

Conseguiu ler "time"? Sabe o que é? 
Penso que não sabe, porque todos nós somos diferentes uns dos outros e há milhões de pessoas que leram e perceberam outro conteúdo. 
A razão é simples, para aquela palavra ser percebida tem que se dar mais informação e como não tem, automática e inconsciente, quem lê assume o que não existe e conclui o que talvez não seja verdade.

Vamos supor dois casos, em que a falta é:


portanto, sem esta clarificação, o João e o John criam compreensões diferentes com as suas leituras porque automaticamente o escrito "time" torna-se duas palavras distintas com distinto significado.

Ler não é perceber a palavra/frase é perceber o seu significado.
Em esquema:

Ler tem duas fases distintas e aprender a ler significa aprender as duas fases e tornar ambas eficazes.
Na verdade, é raro avisarem-nos que:

Ler não é reconhecer palavras e conseguir vocalizá-las, 
mas sim, "surfar" nos seus significados,

ou seja, aprender a ler é aprender a "sonhar acordado", é ser empurrado e estimulado por palavras escritas cujos significados se tornam tão intensos que tudo o resto desaparece,... as palavras, o livro, o contexto.
Muitas vezes nós próprios deixamos de existir, só ficam os significados (ideias-emoções) entranhados nos nossos neurónios e... enraizados na leitura passamos a "sonhar acordados". Vivemos noutra dimensão.


Jovens e adultos que não gostam de ler é porque não conseguiram e não conseguem alcançar este patamar psicológico.
Para eles, descodificar (vocalizando ou não) os traços escritos (formas) domina-os com tal intensidade que o seu significado (conteúdos) leva tempo a instalar-se e quando se instala o sonho acordado não acontece, a insónia vigilante está activa*.
Quando esta lacuna temporal desaparece, as duas fases são simultâneas, e ler formas e conteúdos são coincidentes, só existe uma dança de significados e, então, nasce o leitor e morre o letrado-analfabeto..

*- Há uma grande diferença entre ser bilingue e ser tradutor rápido. Por ex., o intervalo de tempo entre descodificação e significado no bilingue é zero e no tradutor rápido não é. 
Como ex., um bilingue pode ler francês sem ter consciência de ser francês e não português; mas quando lê inglês (sendo tradutor rápido) tem consciência que não é português. 

Outra consequência é que lendo em francês romances, poesia, banda desenhada, etc, tem prazer e fica esquecido de si passeando pelos significados, porém se lê em inglês o esforço destrói o sonho no saltitar entre palavra,  tradução e significado. 

Por experiência pessoal, lendo banda desenhada em francês, a pressão da imagem trazia-me a história e esta trazia-me o significado da palavra. A banda desenhada foi o meu professor de francês e abastecia-me às dezenas no Marché aux Puces (Feira da Ladra ?!?!) em Paris onde restos de edições eram baratas e boas com pequenos defeitos.

Há vários métodos e técnicas que podem favorecer ou bloquear este nascer do LEITOR, muitos com origem no saber tradicional e usados, muitas vezes, com inconsciência dos seus efeitos positivos e negativos.


A dinâmica "forma e conteúdo"
(citado no Blogue Pinçamentos "As portas da percepção" de 03 Jun14, em http://pincamentos.blogspot.pt/2014/06/as-portas-da-percepcao.html )

Como exemplo, […quando uma criança ouve uma ave cantar, ouve o seu contentamento, a sua alegria a viver, a sua agitação alegre…] originada directamente pelo canto. 

Esta situação em que não se percepciona a "forma" mas se sente o "conteúdo", é aquilo que se chama o "ver antigo", isto é, o ver sem intermediários, situação habitual e normal nas crianças de pouca idade.
 Segundo S. H. Buhner:
[... crianças pequenas, com "portas de percepção" ainda estão muito abertas, são por natureza mais atentas aos fluxos sensoriais que lhes chegam e respondem-lhe com maior implicação às estimulações sensoriais, consideradas irrelevantes pelos adultos…]
Porém por processos de aculturação, esse predomínio do conteúdo sobre a forma pode ser invertido ficando a "forma" (veículo) a dominar a recepção, abafando o "conteúdo" e até negando a sua existência. Assim, quando: 

[… um adulto se aproxima e diz que a ave é um canário cantando para outros canários ouvirem…]

o cantar passa de algo "consumatório" integrado directamente e sentido (um conteúdo) para ser um recurso "instrumental" (uma ferramenta) para "lógicar" os conceitos "canário" e "canto-mensagem". Deste modo o "ver antigo", envolver-se no canto, transforma-se em "ver conceptual", usar e objectar .

Talvez num exemplo mais corriqueiro e óbvio, é quando no namoro o "beijo consumatório" da despedida se transforma, mais tarde, no "beijo instrumental" de separação rotinada.

Esta perda de conteúdo pode ser camuflada em frases rituais de emoção-tipo "gosto muito de ti…" enquanto se ajeita o penteado ou se procuram as chaves. 
Na prática, também as frases passam a instrumental em rituais rotinados típicos (vide exemplos normais em filmes):
- um diz "amo-te" e o outro responde "eu também" ao estilo "Olá e Adeus".
- o pai/mãe chega a casa e zanga-se com filho "Não vens dar-me um beijo?". A criança vem dá-lhe o beijo, ele(a) corresponde e "ordena": "Tá bem, agora vai brincar e está com juízo".


Aplicando esta diferença à leitura

Uma simples experiência permite viver a diferença de ler com ou sem "dreaming state", isto é, com ou sem a posição de sonhador onde o conteúdo é primordial e não a descodificação das palavras que fica secundária.

 - Num expositor de jornais e revistas, normalmente observam-se os títulos procurando palavras grandes e depois médias (ou vice versa) e abandonando as letras minúsculas.
É um processo de controlo mental inconsciente, centrado na descodificação da palavra (o ler) e só depois se passará ao critério da preocupação com o seu conteúdo (significado).

Normalmente o intervalo de tempo entre estas duas etapas (ler letra e sentir conteúdo) é grande se o letrado se aproximar do polo analfabeto ou se for numa língua que não domina e será pequeno se o letrado for um leitor numa língua que domina.
Porém qualquer que seja o caso, raramente a leitura das manchas de um jornal ou revista é feita na "posição de sonhador" (dreaming state), isto é, num estado apenas dominado pelo conteúdo (vide as técnicas e estratégias do grafismo de letras, com e sem serifa, etc ).

Em resumo, neste caso…vêm-se as palavras e só depois se pensa nos seus significados.

 - Pelo contrário há factores, por ex.:
interesse pelo que se lê e
treino na língua do texto.

que possibilitam fazer surgir o "dreaming state".
O "dreaming state" é um estado mental em que [..."se mergulha" nos significados, não se consciencializando as palavras]. 

Por exemplo, quando isto acontece ao rever um texto não se veem erros ortográficos mas descobrem-se discrepâncias lógicas e de sentido.

Ás vezes, mesmo um leitor médio ou fraco "mergulha" de tal modo na história do livro que se "esquecem" de tudo à sua volta, até do próprio livro, as páginas e palavras lidas... e não ouvem quando o chamam ou falam com ele*.

*- O que "enfurece" outros que não entendem esse distanciar, sentem-se desprezados e destroem  esse estado mental. Ler um livro é como rezar, meditar, pensar, etc que não temos o direito de perturbar de forma impensada e fortuita.

É vulgar quando saído do "dreaming state" e "regressado à terra",  admirar-se com o tempo gasto, o número de páginas lidas e com o barulho que de repente sente à sua volta.

Mesmo crianças, ainda leitores iniciais que se embrenham na leitura de uma história, podem entrar neste estado de "dreaming", sendo muito vulgar não ouvir a mãe ou o pai chamar, motivo porque depois eles se zangam com a sua falta de respeito em não responder, exigindo que tal não aconteça.
Eles não percebem que acabam de estragar uma vivência importante do seu desenvolvimento como futuros leitores e estudantes eficazes.

No plano do "dreaming state", há duas hipóteses:

- falta do "dreaming state" na leitura
Cria-se um processo dominado pela percepção do sinal gráfico "palavra" que, de forma secundária, trás "colado" a si um significado cognitivo-emocional. Este funcionamento é característico dos semi-analfabetos e semi-alfabetos e de quem aprende a ler numa língua desconhecida.

Segundo estudos feitos (M. Zovko, M. Kiefer, etc) há uma dinâmica neural entre a percepção forma-conteúdo, que se pode resumir dizendo [...o foco na forma inibe a habilidade de determinar os significados que são a base da forma. O efeito ocorre a nível inconsciente, no controlar os canais sensoriais…]

2 - presença do "dreaming state" na leitura,
cria-se um processo dominado pelos significados do sinal gráfico que, à revelia da consciência, origina um curto-circuito na percepção do sinais gráficos (M. Zovko, M. Kiefer, etc). 

A essência do processo de ler (os significados produzidos no córtex) tomou o controlo do resultado e colocou os intermediários (palavras escritas) fora das "portas da percepção".

Vive-se uma espécie de "sonambulismo" provocado pelo fluir na mente dos "significados das palavras" em que:
- [… o foco contínuo no significado das palavras arrasta a habilidade de determinar significados, independentemente do meio utilizado];
[...se o foco passar para a leitura das palavras, a habilidade de determinar os significados reduz-se]

Como exemplo, investigadores pediram a várias pessoas que:

A - Foco em significados - identificassem numa lista quais as palavras referentes a um ser vivo e quais as referentes a algo inanimado, ex.: árvore, pedra, bola, menina, rio, planta, etc.  
Verificaram que, com a experiência, as pessoas se tornavam sub liminarmente mais activas para atender ao significado das palavras e mais rápidas a interpretar frases.

B - Foco em palavras - identificassem numa série de palavras as que terminavam por vogal ou por consoante, ex.: jardim, garrafa, oceano, folha, etc.
Verificaram que, com a experiência, as pessoas se tornavam sub liminarmente mais activos para se concentrar nas formas das palavras, ortografia e formato e não nos significados inerentes, levando mais tempo a interpretar frases.

Conclusões para ajudar uma criança a interpretar uma frase:

- discutir se é substantivo ou adjectivo e qual é o tempo do verbo, talvez não seja um bom caminho; 
- discutir se é substantivo ou adjectivo e qual é o tempo do verbo, além de não ser um bom caminho, TALVEZ seja um mau caminho por impeditivo dessa aprendizagem.

Uma criança, um analfabeto ou um emigrante num país novo aprendem a língua e seus significados sem saber reconhecer substantivos e adjectivos, tempo de verbo etc.
Um letrado aprende uma língua nova não por estudar as palavras e sua gramática mas por andar a caçar os significados das palavras e jogar com eles..

Uma história verídica

Um jovem de 12 anos não gostava de ler, quando lia vocalizava mentalmente as palavras para procurar depois o seu significado (estilo analfabeto), tinha grande dificuldade e lentidão em interpretar e quando acabava apresentava muitas incompreensões. 

Na prática na vida, ele quase só vivia para o futebol, pensava futebol, sonhava futebol e coleccionava cadernetas com fotografias de jogadores. Para o entusiasmar a ler, criou-se um "jogo de leitura" com futebol.

O objectivo do jogo era, na leitura, procurar tirá-lo da focagem na forma das palavras e substitui-la pela concentração no seu conteúdo, ou seja, neste jogo o importante não era dizer as palavras escritas mas sim pensar-sentir o seu significado, o clube, os golos, etc.

Na leitura, entre os factores relevantes para o "dreaming state" está a "intenção emotiva" colada e obtida com o resultado do ler. A intenção é aumentar a razão pessoal para se implicar na leitura, através da intensidade de […querer saber o que acontece no texto…]. 

Assim, foram feitas listas com 50 nomes de jogadores e não-jogadores e o objectivo do jogo era ele conseguir, nos poucos segundos atribuídos, 7s, 5s, 3s, seleccionar o maior número de jogadores. Os resultados eram registados e o objectivo era ele melhorar.
Aceitou o jogo.

A dificuldade não estava na escolha a fazer, pois ele conhecia-os bem, mas sim na velocidade de leitura nos poucos segundos atribuídos.
Por sua vez, o "fun" da actividade foi centrado na quantidade de jogadores deixados de fora e não nos que tinha encontrado, ou seja, o critério era quantos menos jogadores deixados de fora, melhor era o resultado.
Por outras palavras, tinha que ser rápido a perceber o significado "é ou não é jogador", pressionava-se assim a segunda fase e não a primeira fase da leitura. (vide esquema anterior João-John)

Rapidamente percebeu que não tinha tempo para vocalizar, por isso "treinou-se" em conseguir apenas com uma vista de olhos saber se "era ou não jogador".
Sem reparar deixou de fazer uma leitura apoiada nas sílabas das palavras para fazer uma leitura apoiada na palavra global (vide Paulo Freire), fase intermédia facilitadora do "dreaming state".

As listas foram-se complicando com critérios adicionais (jogadores estrangeiros-nacionais; com e sem castigos; etc) e ele, que não gostava de ler, divertia-se cada vez mais com o "jogo da leitura", de tal modo que se começou a fazer listas doutro tipo, por ex, cidades e vilas com e sem campos de futebol, etc…a imaginação era o limite... MAS para ele fazer as listas teve que começar a ler documentação exterior.

Uns dias jogava, outros dias fazia novo jogo... e em ambos lia cada vez mais e mais rápido.
Sem o notar, tinha-se tornado um leitor, tinha passado a gostar de ler, ou seja, tinha adquirido o script "dreaming state" do leitor profissional… o futuro era dele.

A questão fundamental

No processo de aprender a ler,  o "dreaming state" é a etapa final ou é a etapa inicial ????

[...em todas as espécies, cada membro
tem o seu próprio "padrão" para configurar
acessos e bloqueios aos seus canais sensoriais.]
in "Maturation of sensory gating performance in children with processing disorders", Davies, Chang, Gavin

Soldados com ESPT (Estado de Stress Pós-Traumático) têm sensibilidade "exageradamente intensificada" a certos sinais exteriores e hiper-focalização emocional em seus significados,  originando permanentes estados de alerta e de resposta a situações de possível agressão. 

As suas "portas de percepção" para pesquisar perigos potenciais, estão muito abertas a pequenos sons, movimentos e diferenças desprezáveis que, na vida normal, são excluídos da consciência,. 

Segundo estudos efectuados, se este estado persistir mais de 2 anos pode tornar-se uma "modificação duradoura da personalidade".
(vide Organização Mundial de Saúde, Transtornos Mentais e Comportamentais)

A conclusão a tirar é que tudo se passa em scripts e templates neurais por relação experiencial com situações contextuais que […abrem ou fecham funcionalmente as "portas de percepção"…]. 

O "dreaming state" do leitor implicado é uma "modificação duradoura da personalidade de leituraobtida por empolar a aprendizagem nos significados dos sinais. Esta aprendizagem vai abrir e fechar certos aspectos das "portas de percepção" diferentes das obtidas com a aprendizagem por empolamento da vocalização. 

Ou seja, aprender a ler, qualquer que seja o método, provoca sempre modificações duradouras da personalidade, […aprender a ler não é uma simples destreza, é um re-nascer, é começar a ser e pensar diferente…].

Ler, os métodos e as pessoas

A regra é: Os métodos não ensinam a ler, são as pessoas que aprendem com métodos.
Por outras palavras, o factor gerador da leitura são as pessoas através de métodos E NÃO o factor gerador são os métodos através de pessoas.

Não convém trocar os pés. As pessoas são todas diferentes e métodos há muitos desde a Cartilha João de Deus, global, fotográfico, Paulo Freire, o discutível(?) Hado, etc

Como exemplo

Qualquer analfabeto que não lê letras, 
conhece o significado de símbolos visuais e sonoros.

Há métodos de alfabetização em que a palavra é apresentada como um sinal gráfico, um rabisco semelhante a um símbolo, por ex., quando se vê um grafismo-com-leão "lê" Sporting, mas se se vê um grafismo-com-águia "lê" Benfica. 

Portanto, se as palavras forem percepcionadas como grafismos ("desenhos de rabiscos") e atribuídos conteúdos, podem ser lidas frases sem usar vocalizações de pedaços gráficos, as sílabas.

Quando já se domina uma certa quantidade de símbolos gráficos e seus significados, é introduzida uma mudança qualitativa no script de leitura, pela apresentação do abecedário e da lógica de seus arranjos e combinações silábicas e fonéticas.

Portanto neste caso o processo "abecedário-silaba-palavra" é invertido e o abecedário aparece no fim.

Porém quer num método quer noutro, no final deve treinar-se a leitura-forma e a leitura-significado.
Na vocalização começa-se por usar o neo-cortex com a lógica silábica e às vezes nem saem dessa etapa e não gostam de ler, no método simbólico começa-se pelo significado com o sistema límbico a activar a emoção e só depois se passa à lógica silábica.
Sob o ponto de vista neural parece que o processo não é o mesmo.

É interessante notar que o método de alfabetização de Paulo Freire apesar de também começar por lógicas silábicas, todavia considera fundamental usar palavras bem inseridas "emotivamente" na cultura local, devendo nela ser importante e com significado bem conhecido. Apesar de activar o neo-cortex, ele pretende também activar o sistema límbico pela sua conexão emotiva dos significados.

Como conclusão

e respondendo à questão colocada, o "dreaming state" da leitura não é uma consequência obtida apenas pela sobrecarga de se ler muito, pois o principal factor não é a "quantidade de acções de ler" mas sim a "qualidade das acções de ler", se bem que o aumento quantitativo em condições favoráveis possa ocasionar a mudança qualitativa.

Do mesmo modo, a compreensão do texto não está na razão directa das vezes em que é lido nem da performance do conhecimento da gramática pois os analfabetos, sem precisar de repetições, percebem  as conversas que têm e nem sabem a gramática das frases que ouvem e usam

Compreender um texto e gostar de ler é um problema de operacionalidade em:

1º) - ter o script de gerir significados; 
2º) - saber utilizá-lo.

Conselho do Dr. Homemparvo para ensinar a ler:

Conselhos do Homemparvo (Dr.)
Por analogia, não é por empanturrar o filho de comida que ele fica bem alimentado, pois a quantidade resolve a angústia de quem alimenta mas não resolve o problema de quem come.